terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Conjectura

Até onde a imaginação pode me levar? Decerto a um pé de vento e ao que me arde, lá por dentro. Por quanto tempo duraria? Aos menos esforçados - ou mais encurralados pela vontade de sentir - o ato imaginativo extremo encresparia a vida, todo um contexto simbiótico seria posto em jogo; contudo, sobrepujariam-se os dados viciados. Fantasiar e mergulhar-me nisso traria à superfície solidão inata. Descartes, em seu racionalismo, proporia Cogito ergo sum. Acabo com medo de me infiltrar - sem nem, ao menos, reconhecer meu ser - em 'fatos' genuinamente construídos por mim. Talvez por isso, mentalize uma realidade a partir do olhar em direção ao outro. Me entrego a esse ofício de materializar o que temo sentir quando tenho a quem dar a mão. Imiscuindo ideais ao próprio medo de perder a noção do palpável. Coloco o outro para narrar aquilo que, sozinha, julgo não poder crer. E é errado. E faz mal. E engana. Porque, não arrancando os olhos alheios, não há necessidade - e vontade - da parte deles, de ver através de mim. Querem todos reinar em suas enormes barrigas nutridas pelo ego. Quanto custa entender. Só veem o que vivo, e crio, se algum sentimento anterior os guia: culpa, curiosidade ou inveja. Citaria, corajosa, o amor. Mas aqui nunca houve quem dele se utilizasse a fim de digerir meus pensamentos. Devo, afinal, imaginar e criar muitas realidades paralelas? Fugir e recostar a cabeça com o intuito de sonhar? De que vale intuir um caminho brando e mentiroso? Falar com estrelas é ficção? Buscar dissertações sobre um sorriso que, no fundo, foi só um sorriso? Encaixamos pequenas felicidades no cotidiano quando somos otimistas. Promovemos a catarse. Há lógica?
Buscando refletir, qualquer coisa excede o raciocínio. Importa mais viver do lado de dentro ou do lado de fora? Equilíbrio é sensatez? Criar uma rede que filtra a insegurança de alguns tipos de contato contribui comigo ou deteriora a essência? Existe mesmo uma parte imutável em mim? Posso guardar segredos? Complexo é tomar decisões acerca da espécie mais acertada de fuga. Doar-me é pecado quando as pessoas não têm mãos para tatear. Não têm poros para trocar experiência com meu corpo. Mas me esconder entre desejos vestidos em tecido de lã, esperando por um inverno que não vem, é bobagem. Sei lá o que deve ser feito da cabeça. Procuro frear expectativas esperando a surpresa do embate. Mas é tamanha a voz que grita e tenta se fazer ouvir. Ponho monstros pra dormir enquanto escolho entre beijar a poesia do que julgo ser saudade e o medo do esquecimento. Interessante é que não há pré-concepção, se eu a desconsiderar, para imaginar. Viver e criar são situações transcendentes. Ninguém sabe o que é mais vantajoso. Ninguém precisa, também, tirar vantagem sempre. Mereço a incerteza e a inconstância das palavras livres. Do vento pungente. Da boca seca. Do amor que, de uma hora pra outra, passa a ser real. Ainda que só - não por falha minha - dentro de mim.

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Astronáutica

Chamam 'lunático' aquele moço aluado, excêntrico, proseador com a lua. Alheio, encasulado. Sempre conversei com as estrelas, desde que aprendi a observar um céu acostumado a ignorar limites. Pensar que, se dou nome aos sentimentos e vejo dimensões palpáveis nisso, posso canalizar um bocado de carência e enganar a solidão. É como falar com Deus, a gente não tem resposta. Nem pede por uma. O que, quase nunca, evita que eu chore e narre histórias sem pudor algum, que sussurre porque o tom de voz pouco importa, que faça pedidos e imagine meus mortos pregados no azul entorpecedor da noite, brilhantes. A noite densa guarda esses sábios - e vãos - desacompanhantes. Afinal, é impossível que me ouçam? Creio em todas as alternativas que substituam a previsibilidade geral; pessoas andam ocupadas demais conversando sobre 'acho-que-não-gostei-do-presente-mal-embrulhado-que-ganhei-no-amigo-secreto'. Natal também é sobre estrelas e presépios abarrotados de luzes artificiais, luzindo certeiras. Um amor renovável, atitudes prosaicas, inquietamento da alma. Pareceria um enorme clichê se, na verdade, ultrapassada a pequenez vigente, fôssemos todos compartilhadores de peru. O primeiro pedaço é de quem foi capaz de saciar um corpo lúcido. É de um amigo antigo, esquecido há muito pela distância. Paira, entretanto, a força ignóbil dos laços frouxos que ri de lunáticos. Insensatez carnívora. Não cabe troca de afetos durante a fartura da 'noite feliz'. Enchemos o peru de farofa até que ele pareça explodir. Fingimos, solenes, dentro de casa.
Inquestionáveis, enfim, são as exceções: torço para que haja mais lunáticos à mesa. Enclausurados num universo paralelo, citando poetas bêbados e enluarados. Vestidos como Raul Seixas. Queixosos, chorões, impávidos. Não esperam o dia seguinte para abrir os presentes: devoram, a seco, a carne do homem. Torcem por um único feixe a riscar o alto, o vasto, o cosmos feito de um salão onde comungam ideias e imaginação lisérgica. Sou uma moça que conhece um moço que proseia com estrelas. Ele habita meus sonhos e dá, a nós, alimento. Não tem rosto, mas passa o natal tomando cerveja num planetinha de nome escuso. Acha que é príncipe e estende a mão: convida-me a preencher devaneios e sorrir ao tropeçar em interjeições autoexplicativas. É eu me fechar no quarto, arrastar as cortinas e botar o rosto além da janela pra mergulhar num colosso fugaz. Ao amanhecer, meus olhos têm remela empoeirada. Poeira espessa, estelar.

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Alvorecer

Acordo, ainda não posso dizer que é dia. Timbres ásperos denunciam o gari que antecipa a vida em luz. Postes meio apagados fazem as vezes de sol num céu cinza. Há o frescor das cinco horas. Há pássaros que piam, mas evitam voar. Coldplay me faz cantar baixinho de melancolia quando ligo a televisão: don't you shiver?
Tantos mundos parecem coexistir ao longo dessas horas. Interajo com as plantas e a brisa. Porém sei que estou sozinha. Estamos todos, mesmo dormentes. Quanta beleza existe nisso, e quanto silêncio. Uma tarântula caminha sobre a janela desfilando seu veneno. Sei que ela pode me matar e, sem dúvida, desconfia da hipótese inversa. Contudo, não torcemos pelo embate. De novo entendo a coexistência: vivemos e podemos nos matar - até temos motivos para fazê-lo - mas entre nós cabe um bocado de medo e misantropia. Deixo que a aranha ache seu próprio precipício, julgando ter reconhecido o meu: incrustado nas paredes do quarto, emaranhado na inquietude da praia repousante dentro do peito. Sal, areia e a vastidão do mar. Tenho coqueiros que choram. Sinto saudade, quero me perder nela. São caminhos imantados. Que mal tem eu me esconder num latão de lixo? Guardo o receio de afogar naquele mar denso e pesado. Não suponho haver rotina leve, ainda que os pássaros estejam esperando o tempo certo de voar. O vento seca minhas costas. Estou, de fato, acordando. O que é preciso ser dito? Sinto sim, clara, a saudade. Dói acordar sozinha numa cama de dois, num mundo de seis bilhões, numa vida onde as tarântulas põem ovos sujos na janela e se atiram depressa em direção ao caos. Há tanto amor disperso no ar. Há moscas esperando os sapos engolirem-nas. Contudo, podem sofrer de indigestão ou falta de fome. O amor se deteriora, oxida. Injetamo-lo logo nas veias. Agora uma xícara de chá, por favor. Sem pressa e sem sede, porque o sol insiste em descansar. Insisto então em mim, só por precisar viver até você chegar. Ou até que eu chegue aí. É madrugada pra nós.

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Do outro lado

De uma noite gasta em solidão, biscoitos doces demais e alguma música, resultou aquilo que, vagamente, denominamos mistério. Discreto, ainda que com muita graça, despontou na minha frente um gostinho de sincero sentimento. Prato cheio pra uma cabeça desocupada de pessoas, sinestésica em contemplar emoção. Porque quem apareceu era personificação de um sorriso. Felicidade como na boca de uma criança: sem explicação.
Mas mistério que se preza, não caminha só - é tinhoso. Pois que trouxe consigo uma parede densa de vidro. Eu não podia sentir com as ferramentas usuais. Boca, ouvido, pele, nariz. Um pouco de olhos, sempre eles, indicavam uma placa imaginária: é aqui. Parece tortura, só que foi acalento. Com um estratagema, eu atravessaria as leis da física. Transporia meus medos (os dele também, quem sabe) e brincaria de esconder. Andaria nua por entre seus dentes. Um dia.
Pequenas amostras de curiosidade e afeto entre meros estranhos, de tempos em tempos, evitavam que perdêssemos o contato. Madrugadas insones enquanto nos víamos em reflexos do vidro, mesmo que o sono viesse dois segundos depois de nos despedirmos quase sem voz. Nenhuma resposta consistente. E é melhor pular até a parte do encontro. Pois que, sem pressa, descobrimos que nenhuma parede é infinita num planeta redondo e achatado nos polos. Andei tanto pra achar não uma greta, uma fresta, um buraco: ele me esperava junto à porta. Então mãos podiam agir, vozes eram atendidas e nossos narizes se esbarravam. O mistério era ele existir assim como eu existia. Era poder escorregar meus dedos miúdos pela blusa, examinando até os esparadrapos no corpo. Pausa na velha falta de sentido das coisas. Eu só não esperava sentir tanta tanta tanta saudade - essa palavra intraduzível e ímpar em sinônimos - quando reatravessei a porta. Dormir com seu gosto e acordar com a impressão de ter sido roubada, de terem concretado logo aquela parede. Uma cabeça repleta de hormônios, memória e saudade; a vontade de tê-lo todo, em prosa e verso, em rima e riso, espalhando seu cheiro no meu ombro.
Diz então que não some, que do seu lado da parede a gente ainda tem um espacinho pra sair e procurar aventura ou pra deitar no chão e contar história. Diz também que a gente é bobo, que tudo passa e que eu preciso ficar pra aprender a sentir com seus sentidos e arriscar um dedo de cavaco. Que as coisas simples e as loucuras são fáceis comigo. Que dá pra fugir sem rumo pra eu beijar sua orelha. É a nossa verdade, a partir de uma noite onde nada era esperado e, no entanto, já me esperava. E agora, surpresa, a espera tem graça: eu sei que você e eu vamos devagar - e sempre, até onde for.

sábado, 13 de novembro de 2010

Penúria

E de pensar que deixo, meio que amontoado, um sentimento bonito ser recolhido e posto num saco preto de lixo orgânico - não me venhas dizer que amor é vidro cortante ou resto de papel, amor remexe a terra e sabe florescer. E de pensar que desperdiço tão bom parzinho para completar comigo as palavras cruzadas. Machuca. É inviável abrir mão de alguém, principalmente quando a paixão ainda pede rituais antigos de aproximação. Teu corpo era bom de fazer cafuné. Minha mão tem perdido o jeito até pra abrir a janela pela manhã. Nosso fardo, contudo, é leve. Buscas em mim só o andar trôpego de quem lamenta, ao que revelo - a teus amigos - risos sinceros e desapegados. Queres que eu padeça, pagando caro por ser a cigana dissimulada outrora narrada em Capitu. Tu não és Bentinho, não podes matar em mim o que mais é vivo: os olhos. Por isso é que, ligeiro, corres desses olhos que exalam a vontade de atar-te os braços. Desejas um apelo justo por saberes, também, que amor não se atira a um vento bravio. Mas calam teu coração à medida que tiram meu nome da cabeça que é teu guia. Não por isso permiti que tanto tanto atirasses pedras de adeus. Reconheço a vastidão do sentimento e ando meio apegada a ele. Aquela pontinha do imenso jurado a nós é tentadora. Já nem posso, todavia, aconselhar que sejas meu e que corras, voes, transcendas até meu colo. Porque tua cabeça é mais dura do que a minha. Porque não chegaste a crescer diante da presença querida. Não nos unimos em segredo, embora fosse a coisa mais linda do mundo. Será que esperas por algo?
A falta de explicação comprime meu peito virgem e, num instante, me ganhas logo outra vez embrulhada de presente. Jogas quilos de fita no latão do lixo. Tu perdeste a noção. Ignoras saber que vou embora; pois que fujo, impossível achares um pedacinho, que seja, de embrulho. Não me tens como teve, ledo engano. Terás agora um bilhete: enternecedora é a hora da partida. Há de vir um tempo em que sonharás com um par de olhos colados àquela boca que te fazia dormir. Há de sentir o peso da falta, e teu fardo não mais será brando. Há de queimar tuas mãos. Jogaste fora um bocado, mas eu me colo. Poderás, enfim, colar-te em mim?

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

O menino que nunca recebera uma declaração de amor

Me disseram, não faz tanto tempo, alguma coisa a respeito de um menino que desconhecia o amor. Seu nome não importa, mas era velho o bastante para ter quem por ele olhasse: estava na casa dos dez anos. A mãe, supus ser uma mulher com traços de timidez ou desatenção; o pai, sempre trabalhando, pouco sabia do resto do mundo. Hábitos prosaicos. Televisão ao fim do expediente, jantar na sala, aluguéis de comédias durante os feriados. Suspeito que, havendo alguém a lançar um olhar ao pequeno, existiriam chances de que ele pudesse - e soubesse - ver a si próprio e ter sua hora da estrela. Só que logo seria um homem e talvez nem tivesse entendido a grandeza disso justamente por nunca, nunquinha, ter se deparado com a coisa que aqui chamo de amor. Uma coisa meio mecânica inventada para recriar a utopia dos contos e a excrescência dos poetas. Uma coisa filha da puta de boa. Perigosa. Quem arriscaria dizer: eu nunca amei? Nosso projeto truffauniano, sim. Porque parece que ali não houve semeadura. É comum essas pessoas acabarem tendo rostos brancos de inanimação, tais como as folhas que acompanham, grudadas, a capa de um livro. Pois bem, fiquei comovida com a prerrogativa de desventuras. Nenhum professor, nenhum amigo, nenhuma menina ou familiar quisera introduzir, lá no âmago, um respingo de amorzinho. Eu gosto de declarações. Então, naquele dia, elaborei um tosco plano. O de, num rompante, exclamar: andemos juntos, eu amo você! Louca e cheia da inquietude onírica, parti para a execução. Como custaria.
Um pequeno detalhe é digno de nota: também tinha por volta de dez anos. Onde aprendi o que tive a pretensão de querer ensinar? Nos romances de Virginia Woolf e ao confabular com o Sítio do Picapau Amarelo. Me aproximei do menino sem nunca antes termos conversado e reparei que seus dentes eram bonitos e que tinha uns olhos de leão - leão meio deslocado da savana, é certo. Quis sentir seu hálito, mas pouco falava. Lembro que gostou das minhas mãos, sibilando: são pequenas, fazem bem a mim. Ali abandonei a esquisita filantropia, pois o cretino me ganhara. Passamos a nos enxergar mais. Agora eu sentia medo de simplesmente vomitar nele palavras. Cogitei a possibilidade de um beijo. Grande imaginação a minha, ele seria incapaz de beijar lábios tão virgens de carinho quanto os dele. Decidi refletir. Importante foi eu ter entrado, de soslaio, na vida de alguém. Já li uma coisa parecida com isso certa vez, perdão pela falta de memória, mas era quase assim: tente imaginar a emoção do primeiro arqueólogo ao descobrir o túmulo de um imponente faraó. Ao percorrer uma espécie de caminho desconhecido, adentrei naquilo que nem o próprio pequeno julgava existir. Que aventura. Que responsabilidade para uma também pequena. Seguimos.
Dada uma certa altura, minha vontade de sussurrar ternura era tamanha que, por pura impulsividade, escrevi-lhe: gosto gosto gosto de gostar de você. Não se preocupe, gosto gosto porque entendo a sua força. Ao que ele respondeu: não sei gostar, mas tento. Então tentamos, duas crianças debaixo de uma imensa tábua azul onde penduraram estrelas. Ele sabia tanto sobre tanta coisa. Eu sabia da felicidade do encontro. Só faltava a declaração em si.
Pois que não houve. O menino que não tinha sentimentos partiu os meus. Como? Por um medo repentino de passar a amar com os olhos abertos. Pois que não houve mais do que mãos dadas e afeição. Num bolso da calça, meu papel reafirmava os passos, o amor, a amebíase que é estar apaixonado. Choveu no bolso da calça uma enxurrada de lágrimas pueris. Chorei também como mulher - mas esse choro lavou. E a história do menino sem letras de Chico Buarque ou poemas de Adélia Prado acabou como qualquer perda. Perdemos todos. Fiquei eu com a sensação de desbravadora, ainda mirim, de um coração desprovido de ressalvas. A coisa mais linda que já tateei. Quem sabe não era eu a destinada a narrar um amor surreal. Mas você, menino perdido, menino pequeno, menino maior do que eu, foi violado por mim. Guardei o invólucro e não devolvo. A não ser que se devolva embrulhado na maresia descolada da tábua, aquela tábua de estrelas.

P.S.: Há, sobretudo (e somente), saudade.

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

O balaústre

Toda história é um pouco sem fim. Tantas vezes dói chegar num ponto crucial onde, grosso modo, o problema é justificado. Atitudes ganham tons reacionários. Uma espécie de líquido purulento é botado pra fora porque já é hora de dormir e personagens não se articulam longe das mãos de melindrosos escritores. Sempre há decisões a serem tomadas. E é isto o gozado: nomes, esdrúxulos ou não, são dados aos bois. Como diria Drummond "... Maria que amava Joaquim que amava Lili que não amava ninguém", um elemento escolhe fazer, desfazer ou ignorar a vazão e a caracterização parece ser acalmada. Entretanto, remates recaem adormecidos.
Durante o sono, durante até a insônia, o propósito dos homens permanece inerte. Corremos, lemos, sorrimos para estranhos. Lá jaz o convite, ao lado do paletó. Quantos achados e perdidos. Tantos solos de piano. O fim não existe pois não há mais engrenagens. A língua da máquina é intransponível. Os fatos literários nutrem desvarios: um livro só conhece seu final quando esfrega o tal gosto da morte nos ombros do leitor. Durante alardes faraônicos ou em capítulos inteiros falando daquela travessa de macarrão na mesa de domingo. Ao tocar nichos e valas nas pequenas desgraças cotidianas. Um livro que me toca acaba consumindo bons pedaços de (des)ilusão. Tenho medo de, adiante, pôr um fim na história mais mirabolante que habita o cerne do cisco onde vivo. Não podem estourar meu invólucro já senil de cigarra. Mas sei que sondam ruir estruturas e estampar pensamentos outrora consagrados. Escrever não acaba enquanto a leitura não mata.
É um desgostar trilhado. É excremento. É a perfídia. Trai-se a fim de não atirar pra cima contando com a surpresa da queda. Tem-se uma mina de ossos e carvão. Falta a coragem de quem padeceu. Carne mansa. Quebra de sigilo com dados viciados. Guerra branca. Livros nas mãos, ode aos loucos. Cala-se e não consente. Toda atenção é dada às letras para que só os personagens peguem no sono. Deixo, por fim, ainda que esse não exista, que pássaros salpiquem meu rosto das poucas letras com que resenho nomes em pedras. Leio de olhos fechados o errante estágio do verbo enquanto é.

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Sine Die

Negligente, seguiu do outro lado da rua. O dia havia sugado até mesmo suas espinhas no rosto. Enxergava-se através de muitas dimensões, pois a face já soava como casca de árvore que engrossa a fim de contar os anos. Sentimentos paleozoicos. Sempre aquela sensação enrustida em mãos diferentes passando por sua vida confusa. Valia-se de nada, nem do caminhão de experiências por que tinha resistido. Estava mais magra: parecia um esqueleto preservado pelo tempo.
Não sabia explicar se fora machucada ou mastigada por incólumes palavras. Incongruente esse caminhar. E foi andando aos tropeços, num esforço honesto. Ela, a negligente, teve repentino anseio por manter-se de pé. Lembrou de premissas arrastadas por livros. Condenara os clássicos tão ardentemente, e logo tudo transitava pelo clichê. Braços de ninguém. Menina dos olhos despregada. A droga do rompante. Seus cabelos atrelados àquela reação em cadeia alucinógena. Perdida em Verlaine, absorta numa névoa de filmes antigos. Tanto drama. Decerto o velho Goethe sorriria em ironia.
Adiante sibilava uma ponte em tom cinza. Ela não pularia para se justificar. Ela tinha amigos alienígenas enquanto bebia. Ela era escorpiana. Só permanecera em si a demência e a deterioração. Dubiedade de quem jogava com sentimentos alheios e assistia engolirem os seus. Ao menos experimentasse a fraqueza e a sinceridade do anonimato. Dar adeus aos velhos fantasmas, tirar a roupa no meio da rua. Seguir cartilhas e jogar no bingo. Contava mais do que a surpresa do ato, tornaria-se uma questão onde estratagemas eram postos ao alto.
Quis ouvir música, então cantou. A voz, envolvendo ponte, luz, calçada suja e insetos no chão, era doce e destoava da vida. Como assim? Destoava. Não desbotava nem dava ar sadio. Um provocante afluxo de ondas. Quisesse provocar um rapaz, duvidaria de sua capacidade mental. Cria em botões que se pareciam com escaravelhos. A voz doce destoava por ser doce ao pé da noite onde tudo é mentira e nada é verdade. Onde beber traz amigos extraterrestres arrastados por um timbre que gruda. Amigos são sempre bem vindos e umbigos guardam água do último banho. Não pulou da ponte porque faltava procurar por muito daquilo que lera - abominando - nos clássicos.

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Alguma vicissitude

Os dias não rendem. Há tal sensação de estranheza, falta algo como pertencer. Aos outros, às ruas, às noções de tempo e espaço. Necessito ainda daquele estado de calmaria. Preciso agir como minha mais real companhia se, de fato, a sou.
Ultrapassa a solidão, atingindo estado de sítio: o interior posto em alerta.
Não posso dormir. Naufraguei em meio às vontades que tive. Como agarrar destroços é sacrificar os novos sonhos, tento controlar o que em mim não pensa: simplesmente manifesta. Inato.
Diante do esquisito rompante estremeço. Mas fico parada por sentir o peso do mundo nas costas. Um buraco negro onde trotes e escarros são absorvidos. Barulho algum interrompe, pessoas detestam dançar esse tipo de valsa. Parece o fim, não existem ao menos as assombrosas portas do Teatro Mágico. Fugiram até outra dimensão os loucos e os raros. Comigo o lobo permanece, se desespera e arranha a fechadura. Quer trancá-la, me atar a ele.
Siameses embevecidos do nostálgico. Tristes tolos.
Sorte - e revés - é justamente tentar escapar de si. Coração disparado, súbito silêncio em compasso. Sonatas apelam ao escuro imenso do buraco. Perder-me em meio a tantas vozes que nada dizem. Pessoas mentem, tropeçam no último degrau e sangram os joelhos durante uma noite inteira. Gotículas quase secas deixam vestígios cabais, brutais, escorregadios. Ninguém se oferece a lavar a escadaria. Perseguir velhos medos, dar o sangue em troca de ajuda. Pactos não são bem vistos. Faltam exploradores da solidão humana. Mais histórias desperdiçadas e outros seres acabando retardados pelo ritmo obsceno das heras que se espalham no vinco - por onde o já desgastado sangue escorreu. Agora sem cheiro, apenas cor. Aquela notícia rasgada num jornal que ninguém lê. O sinal vermelho num semáforo no centro da cidade.
O lobo só vasculha entre a carniça.

domingo, 29 de agosto de 2010

O amante


Dias desmembrados em acontecimentos desconexos, pessoas tão apressadas e pouca espontaneidade vagando até o momento em que somente a imensa calmaria do céu posto com lua cheia aguça os sentidos pardos - ali nada precisa ser compreendido. Deu-se, alguma vez, maior presente que os claros hiatos de agosto? Talvez uma pintura de Van Gogh capturasse algo entre a beleza e o esplendor da noite em prosa. Mas a solidão é tanta. Ao me deparar com os desejos aniversariantes, percebo - bem lá onde já não me atrevia a voltar - a carência transcendendo o subliminar. Aqui, sim, é preciso tocar e explorar, para então dissecar as dúbias entrelinhas. Não sou poeta, entretanto, por vezes, os dedos de palavras tentam transpor o frêmito das quase duas décadas sentada, ainda que de mãos pulsantes, num meio-fio qualquer. A lua é uma espécie de antessala sussurrando ''acompanho-te durante a sobremesa''. Desejo gente nos meus aniversários. Uma raposa, o charmoso Escobar ou Jonathan, de Adélia Prado. Alguém em quem possar dar uma porção de mordidas no queixo, um menino com as calças certas. Há tal desespero em ser querida. Mais ainda em querer agarrar pelas unhas o cheiro de travesseiro impregnado nas bochechas dele. Só que eu não o acho. Juro que procuro em tantos olhos, cada lua vem sussurrar ''acompanho-te...' e não basta. Sinto medo, sinto fome, sinto coceirinhas na barriga. Quem dera fosse inferno astral, tristeza repentina ou vontade de chorar, mas acabar prendendo as lágrimas. Digo ser saudade, não me acostumando por não querer que passe. Eu busco músicas que cantem nosso amor. Abuso do controle remoto em cenas onde aparecemos comendo biscoitos no sofá. Rio dos sonhos quando acordo. É sufocante, e me prende à vida. Até que nos encontremos: lua nova, janeiro, um jardim de Renoir. Nós dois, único número primo que é par. Matar a podridão daquela imagem inclinada: cabelos longos de uma menina curta sentada ao meio-fio. As ruas daqui nem são importantes, têm nomes de homens velhos e burocratas. Espero a caixa diminuta em que trará um anel de vidro. Meu Jonathan mandará ladrilhar a longa rua e fugiremos dali. Escobar cuidará dos meus olhos. A raposa lembrará sempre da eternidade do encontro. Tem que ser pra logo.

domingo, 8 de agosto de 2010

08.08

Se você fosse a chuva, viria de tempos em tempos e molharia meus olhos. Imporia seu valor, limparia a fuligem dos carros, embaçaria janelinhas e retrovisores. Eu botaria a língua pra fora e o gosto insaciável da água sem minerais se dissiparia tal qual a presença transparente dos traços correntes. Você me envolveria, embalando passos. Se fosse um pingo, roçaria por meu pescoço até escorregar por dentro da roupa. Atingiria coração, pulmões, estômago. Enfim o encontro. Mas parece que não chove: a vida anda numa secura, num sonho encurralado, em perdição. Eu ligo o chuveiro e fico sentada olhando a mentira que é a água vir encanada. Há praticamente o chão e o ralo, pastilhas azuis e uma toalha torta. Eu não sei tomar banho quando me lembro da chuva. Só fico sentada como uma pequena sobrevivente do holocausto. Soldados não vêm. Você não se derrete e me molha. O banheiro vira deserto, então eu choro. Coisa salgada, coisa doída. Tento me espremer em choro para que a chuva caia por meu esforço. Tento parir meu pai. Você, aquele que não aparece no escuro. Quem não enrola meus cabelos, tão iguais aos seus. Meus lábios, meu rosto, meu gosto pela bebida. Sou você encarnada em flor. Seus passos trôpegos, a vontade de fumar. E não é o simbolismo da data que me faz lembrar disso - é a inerência de ser a extensão dos seus músculos. Pai, pai, pai. Poucas vezes esse monossílabo ganhou a garganta com alguma emoção. Nunca foi meu herói nem me deu de comer. Guardo, no entanto, a saudade da vontade. Do desespero de ser sua, muito sua. De amar sem restrições a voz me guiando a qualquer momento. As mãos geladas, a cor mais do que púrpura, cravos na hora da partida. Disso me lembro, do nosso final. Pai, faz chover pelo menos um pouquinho. Você não é Deus, eu sei. Você é só um pai sem uma filha. Estéril. Sozinho, tão a sós com a indiferença dos lírios quanto qualquer um. Você teria a mim de pé, braços trêmulos, olhos de ninfa. Por ora, tem o abraço estrangulador de morfeu. Dorme com ele, mas não esquece das histórias que podia ter me contado. Eu não esqueço. Não o deixo encavalado entre outros corpos desgastados. É o som de uma noite, ao telefone, você dizendo: sabia que a gente tem um osso de nome rádio? É essa coisa arrasadora da chuva destruindo casas. Era o leitinho que saía de uma planta que você disse pra eu ter cuidado e não levar à boca. Andar de carro enquanto eu morria de medo de amar um pai ausente. Pois amo. Amarei o platonismo que a morte constrói, mas sobretudo as falhas que lustram os acertos miúdos. Amo-lhe enquanto me agarro aos acertos. Só não perdoo a falta. O buraco que a água não preenche durante o banho, mesmo quando meu umbigo fica transbordando de um jeito engraçado. É difícil discutir com a morte quando acaba-se de conquistar alguns argumentos de adulta. Eu não soube entender o pecado que era a distância. Ensinar a ouvir Robert Johnson, o blues combina tanto com você. Gravar cds para que a gente pudesse viajar, você e eu. Who loves the sun, sua cara de 'não entendo Velvet Underground' e risadas. Holding hands, de onde estiver. Estaremos juntos, ainda que por pura utopia. É que é tão cedo, não chove até o verão. Procure ser vento e assopre algo sobre 'não saia de casa sem guarda-chuva, minha pequena'. Ouvirei, promessa.

sábado, 31 de julho de 2010

Die another day

Haviam enterrado sua carne em enormes baldes de gelo. Era domingo, o que servia pra confundir o ranger das portas surradas com o monte de ossos estirados sobre a cama de colcha verde. Retalhos cercavam o ambiente. Quadros com gravuras de santos, sabe-se lá quem eram e o que teriam feito. Amuletos para proteger um corpo despedaçado, doente. Viver em cidade grande mata, diziam uns. Enquanto isso, ela preferia ferir a gengiva com um palito até sangrar. Que se pode esperar de alguém sem a rigidez secreta dos músculos? Roubaram a garantia da ação e deixaram aquilo que se chama de espera. Inútil calçar sapatos para dormir. Levar maquiagem ao rosto e esconder a única realidade: negras olheiras. Espasmos, sonhos, minhoquices na cabeça. Solidão pode beirar a loucura. Barulhos estranhos na sala, muita bebida destilada. Embora preferisse gelo e alguma água, deitada permanecia acompanhada por uma goteira ininterrupta: chuva dos canos velhos da casa. Líquido viscoso batendo fundo em osso. Calando. Luta entre espadas.
Ao indagar se era mulher, se tinha curvas e traços exóticos ou cabelo macio, caía em si. Seus dedos haviam perdido até as digitais. Sacrilégios mórbidos, pupilas dilatadas. Que ligasse ao restaurante e pedisse macarrão, comeria com os dentes e então se satisfaria da fome de longos anos. Mas desistiu de tudo, outra vez. Quanto pessimismo, seria mesmo uma fêmea execrável? Puxa, restava sangue. Sangue entre os ossos calcificados, sangue nos olhos quase cegos, sangue fluindo ali. Decidiu se jogar da cama, fugir dos retalhos e se chocar com o chão. Talvez fosse de vidro e quebrasse feito uma bonequinha que teve na infância. Desfazer-se-ia em flocos transparentes. Colocariam seus restos em saquinhos para que o lixeiro não se cortasse. Existiria a redoma do cuidado. Súbito debruçou-se já quebradiça e fechou os olhos: foi. Durante a queda sentiu o vento dilacerando o tempo, nada mais importaria. Surpresa era escapar do estrago. Caiu sentada, amortecida pelo bumbum. Recuperou instantaneamente braços, queixo, cartilagens e forma. A coragem de, enfim, atirar-se à morte transformou a inexistência de perspectivas em vergonha, culpa cristã.
Se nunca deixara de ser a moça morena que gostava de amarelo, por que diabos desistira dos espelhos? Tocou as sobrancelhas e sorriu com a boca ainda machucada. Era óbvia a existência de feridas. Deu-se a chance de levantar. Não fazia sentido ainda estar ali. Devia correr, amar um estranho, abraçar seus pais? Anotou de modo mental os velhos sonhos e assustadoramente perdida deitou-se. Achou que descansaria até estar preparada, pois evitava a tal correria com a vida. Meteu-se a ouvir Schumann e sua Kreisleriana. Brainstorm. Chances sempre são tiros no escuro, experimentar não é vencer. Tivera o rompante, faltava o tesão. Razão é argumento de céticos. Mas comportar-se tal qual uma raposa definitivamente não demonstra fé. Autodestruição também é hipocrisia. Tomou, por fim, sua boa dose de antidepressivos. Uma noite, outra noite, incoerente pedido de ajuda. Paredes e notas musicais denotando fuga, fuga fuga fuga fuga, fuga.

terça-feira, 20 de julho de 2010

Encontro


Pintei seu rosto de verde enquanto a gente ouvia um cover dos Smiths. Você já entrando nalguma viela da mente, eu coçando sua falha no cabelo. Relógios foragidos sem promessa de recompensa. Seu rosto pintado de verde preterido pelo sorriso porque os dentes remetem ao pecado da gula, ao desajuste do calendário. Sem querer vi nascer um maço de gérberas atrás da minha orelha. Surpresa, entendi meio ressabiada a possibilidade do cuidado. Mãos zelando por mim. Olhos complicados de encarar justamente por refletirem o frescor desencontrado da pouca idade - meu desencontro. Corpo distraído pela imprudência vertiginosa dos meus dedos. Dia sim, dia não, sonhei com um gramado onde beijava um menino desconhecido. Smiths transformados em Beatles. Eu sendo Penny Lane, Anna, Clarabella, sua wild honey pie. Talvez uma despedida de Eleanor e da solidão dos traslados, da fuga insensata daquilo que chamavam por destino. Era louca renovação. Dei a chance de me enfeitar pra você com aquelas flores. Deixei que seu tronco me sustentasse. Nos aninhamos quando, ao servir o café, você botou torrões de açúcar nos meus sentidos - todos eles.
Finalmente uma história de cinema: dois estranhos numa livraria na seção de rock. Uma menina pequena, vestida em psicodelia e de mãos suadas. Um rapaz que tremia até os cotovelos. Juntos como namorados, perdidos em protocolos e cerimônias: qual é melhor hora pra beijar você? Entre as 24, escolheria aquela em que seu perfume se impregnou no meu vestido. Ou a outra em que ouvi seu coração desesperado. Ou a das mãos dadas. Entre as 24 horas do dia bastariam os longos minutos de silêncio ao seu lado. Uma tomada longa sustentada pelo riff de here comes the sun e, ao fundo, uma amoreira. Amor não é poeira, luz baixa e sussurro. É a clareza da manhã amarela, sanduíche de presunto com suco de melancia e sorvete. Paixão é ouvir The Smiths, o amor vem com os Beatles. How soon is now? Let it be.

segunda-feira, 5 de julho de 2010

À espera(nça)


Não chovia porque era Julho, nunca vi chover em Julho. Nunca vi braços dados na chuva durante todos esses anos. Talvez nos filmes. Fellini, Jeunet ou Godard com suas mocinhas manhosas e espertas encontrando um rapaz de olhos impregnados por geleia de ameixa. Os mesmos olhos que não costumam ser vistos numa multidão, tímidos e angustiados. Fazia tanto frio, e por que o céu não se (des)fazer todo em gotas? Nada trazia renovação. As folhas nem caíam como no outono, o mundo estava - pelo menos nesse hemisfério - seco, vago.
Mudar-me daqui tampouco seria solucionar problemas. O calor que agora transpira ao norte é temporário, logo volta pra cá. Ser feliz pela metade não interessa a ninguém. Precisava ver homem e mulher sendo reais, verdadeiramente agraciados pelos pingos d'água. Ainda que não fosse eu junto a ti. É preciso saber abrir mão dos frutos se, porventura, verdes estão. Eu, que acho engraçada a cara que as pessoas fazem quando mordem uma banana imatura, sendo privada da adstringência dos teus lábios. Daquilo tudo que busquei descobrir entre a mudez e solidão. Precisaria ir a Marte para te esquecer. Sabe-se lá o que o cosmos guarda. Um país de sol e chuva: casamento de viúva. Refúgio da chuva e do sol: casamento de espanhol. Bastava a união entre a viuvinha e o imigrante. Beijos molhados, roupas secas, nada de resfriados. A humildade de quem deseja estar perto pois entende a falta que o outro faz. Nós dois planejando o que comer de madrugada. Felicidade despretensiosa. Há melhor jeito?
Se não te tenho montado num patinete, tu te colas ao botão mais secreto da minha camisa. Se tu não falas a minha língua, te ensino a cantar de boca fechada. Se não estás aqui, te boto num livro, viras palavra. Minha palavra mais bonita: amor. Aí viajo pelo quarto em busca de ti.

sábado, 12 de junho de 2010

A um outro menino ou à solidão que se compartilha


Eu era um palhaço preso a grilhões, um tolo bandido de mãos atadas. Náufrago na perenidade do tempo. Escuso, parco, moreno dos olhos castanhos. Eu brincava de ser o pracinha na tentativa de bancar segurança aos homens. Jogava futebol como quem chuta latas, e não arrancava sorrisos das garotas do primário. Eu dizia palavras em latim para que dessem crédito a toda aquela confusão que rodeava meus textos. No fundo só queria ser aceito. Daí um dia perdi minhas malas diante do metrô e me sobrou um boné. Dei de cara com esse atalho cheio de barro por onde meus problemas flutuam e o fluxo ameno e nauseante engole uma possível realidade. Dormir aqui não é tão fácil, mas vi que esperar sozinho pelo eterno é besteira. Tomo meus remédios, dirijo uma moto já gasta e me desloco por entre a vida de estranhos. Com o boné na cabeça as memórias refrescam, os dias passam, a gente nem distingue mais a verdade das mentiras enfastiadas. Não quero salvar ninguém, simplesmente. A minha pele já andou em jogo demais. Então eu levo um copo no bolso e jogo conversa fora. Não me interessa o porquê, a vida me despe de explicações. Ando mais um pouco e brindo com alguns amigos. A burguesia morna me parece ideal. Deixo dor a quem a queira sentir. Esqueço-me, pois, de mim.

sábado, 29 de maio de 2010

Ciranda, cirandinha


Recordasse eu dos olhos da bailarina, a verdade seria simples gracejo. As ruas não chamariam pelo nome de meu pai, os postes guardariam a luz da manhã que ninguém vê e, depois da aurora, encheriam a cidade com o quebrantamento das seis horas. Aquele que dormisse recostado ao colo da branca bailarina pouparia um sorriso, pois seu coração estaria pleno de conquistas. Sentiria beijos com os dedos. Nesse enlace entre guirlandas, gomalina e o calor equatorial do ventre da moça bonita, o rapaz entenderia que de nada vale ter dentes. O mundo não engole ninguém. Pudesse eu enxergar a luz entre os pés de quem dança aos desvarios. Tomaria-lhe as mãos. Liberdade ainda que tardia, um salve aos ideais. Entretanto, a áurea dançarina não mais veio. Talvez teve vontade de se entregar ao tango, tão triste era seu caminho. Talvez quis pintar-se de preto, um luto ao soldadinho. Bailarina não ama. É como a história de Capitu, de Ofélia, de uma atriz do cinema mudo. Vaga, em busca de não se sabe o quê. Finge que sente, daí começa a sentir. Depois corre de pés enfaixados. Custa a mim falar disso. Não nasci bailarina, despreguei do céu como uma fatia de bolo. Fui ao teatro vez ou outra, chorei de quentura. Meus olhos de chocolate, meus lábios de cereja, minhas bochechas de baunilha - que mais valeriam a um glutão – arderam. Então tive vontade de ser a doninha de alguém. Beijos com gosto de sorvete, felicidade em caixinhas coloridas, tornozelos se esbarrando. Soldadinho eu não queria. Sofrer pra quê? Talvez me valesse de Cesário Verde: tuberculoso, dócil e amável. Nossa história duraria tanto quanto a vida de uma rosa, o ideal. Talvez me valesse do Pequeno Príncipe: melancólico, pueril e companheiro. Talvez me valesse de Popeye: um grande marujo a lutar por sua Olívia. Soldadinho quebra a perna. Chora no escuro. É segredo, mas tenho medo de escuro. Chamaria a bailarina por ele e para ele. Só isso.
Como encontrá-la? Conheço os gestos, e seu rosto me fugiu à memória. Quem vê o rosto da bailarina? Refletida em dó menor, sua face se esvai. Cabelos presos, nuca de ninfa. Vestido em camadas – tal qual um bolo. Seria essa nossa semelhança? Ela rodopiando, linda em fragmentos. Eu, dispersa entre pratos, talheres, línguas carmim e uma xícara de chá. Nós duas sem infância, ignoradas quando meninas. Mulheres também não somos. Há o limbo. A bailarina se esconde no limbo enquanto me embrenho em ideias. Fita de cetim, perfume da flor de laranjeira. Essa coisa doce que existe em se esconder. Preciso confiar a você tanta coisa, pequena. Escreverei uma carta ao hemisfério norte, responda a lápis, por favor. Mandarei junto alguns torrões de açúcar e, em troca, saberei por sua letra como é a boca de um garoto. Vai me preparar pras claras em neve que me cobrirão. Seu soldadinho se orgulhará em alguma trincheira. Dançarão a polca um dia. Ritmo de tolos, perfeito pra quem nunca se deu ao luxo de amar. Por enquanto, ensaie. Deixo você dormir na minha caixinha de joias.

quinta-feira, 20 de maio de 2010

Totidimensional

O cubo mágico estivera estragado por todo aquele tempo. A quem atrelar a culpa? Possivelmente ninguém sequer tocara naquela encarnação oitentista empoleirada na escrivaninha. Geometria tridimensional, cores primárias, lógica húngara. Um singelo objeto com 43 quintilhões de combinações. Gilberto nunca soube combinar a própria roupa. Xadrez puído com malhas de lã, meias finas e tênis branco. Mãos muito limpas, unhas grandes pra dedilhar um violão cinza. E a fixação em fitar nove quadradinhos bagunçados. Por que enxergar a vida em duas dimensões? Se Einstein citou o tempo como a quarta, seria Gil manco de duas pernas? Comprimento versus largura. Profundidade era coisa pra artista, vai ver ele queria mesmo polentas fritas no jantar.
Depois de comer, sorrir para a mãe frígida e juntar as fraldas do irmão, Gilberto voltou ao ponto de partida e se sentou desgrenhado na cama. Rodeou o quarto, tentou aderir formas ao pensamento e, estranhamente, notou a janela. Soube contar quantas vezes tinha se aproximado dela nos muitos meses em que esteve hospedado em sua casa. Umas duas. E daí? O que há pra ser encontrado num buraco da parede? Desvencilhou-se da colcha meio hippie de retalhos e quis conferir. Deu logo de cara com o tal profundo das coisas. É, uma janela com sua crosta amadeirada se faz moldura. Durante o dia, pro caos urbano - à noite, imagina-se pra quem: a lua intocável. Pequena, minguante. Unidimensional. Vírgula cercada por estrelas, dependurada num céu de Van Gogh. Gilberto se sentiu embasbacado por descobrir o astro de um jeito tão nonsense. Que espécie de menino de onze anos despreza assim o satélite natural do planeta? Explicações entravam por uma orelha e saíam pela outra na escola. A que veio à Terra, afinal de contas? Conhecimento vai preencher qual vala no peito? Tudo é inútil, meu Deus, até o cubo estivera sempre estragado e o garoto não se deu conta por simplesmente não girá-lo de cabeça pra baixo e constatar a falta de um quadrado branco. Justo branco, sua cor preferida. A mãe um dia dissera que aquele tom era a junção de todos os outros. Isso ele guardou.
Afundado no oco, desejou dormir à janela. Toc toc toc. Adivinhou ser o pai. Ouviu a voz filtrada pela porta, voz que não tinha peso, textura, altura, mas preenchia o cômodo. Estranho. O profundo dentro dele doeu ao entender as últimas palavras ditas: dorme bem, meu goleirão. Gil percebeu o afeto primeiro. Seu pai era o único ser a crer nele, menino de onze anos que agarrava todas as bolas. Quais são as dimensões duma esfera? Entendia disso também não. Mas achou graça. Abriu a vidraça, se assustou com o vento. Indimensionável? Jogou o cubo fora. Fechou a cortina, deixando um pouco da brisa se misturar aos sons deixados pelo pai. Poxa, ser esquisito não é tão ruim assim. Quem sabe pudesse ter uma garota dali um tempo, uma companhia, um encaixe. Mentira, argh. Meninas já se depilam aos onze. Mudou de assunto tocando aquela música do Titanic que ensinaram na aula de violão. Queria ser grande, ir à lua defender gol sem a nossa gravidade. Ser astronauta. Gilberto descobriu os sonhos ainda garoto. Há quem nunca tenha se imaginado no céu. Há quem nunca tenha resolvido o cubo de Rubik. A noite se faz imensa com seus universos paralelos, há, secretamente, quem saiba chegar até lá.

Pretexto


Foi embora de novo e de novo e de novo. Cê vai e eu fico, mas pode ser que, pra ti, tu fiques e eu vá. Pode ser tanta coisa. Meus medos quase enroscam nos teus dedos delgados, as vozes se desfazem, cílios brincam como asas de borboletas. Milhares delas flutuam pelas paredes do estômago que nem comida pede, pelo diafragma descompassado à tua presença de brincadeira. Meu amigo imaginário, meu legionário, meu locutor parado no tempo. Vejo em cores, mas te encaixaria num radinho azul de pilha. Engraçado como tu cabes em cada pedaço da minha cabeça. Vem dormir aqui, encosta teu jeans nos joelhos redondos, molda uma careta pra mim. Não sei quanto tempo a gente pode durar e, sinceramente, pouco importa. Já marcou, pois tu fizeste um buraquinho no coração pra dar de beber água com açúcar - feito os passarinhos. Agora me deixa ficar no bolso, te ligar com o sol nascendo numa segunda-feira, murmurar quase sem voz alguma música que cante a quentura que trazes pros meus pés que nem precisam mais de meia pra dormir. Melado, apaixonado, infantil. Mas me ensinavas até meia hora atrás a importância de ser, sem ao menos ter porquê. Dizias pra me aceitar, fazer piada. Lição de amador. Gosto de quem nem soube trocar o sabor do picolé na boca. Será que eu posso mesmo dizer que te amo? Tu não duvidas, mas não dimensionas. Um menino cheio de dentes e gestos e pele de bebê quando faz a barba. Um menino que podia se abraçar em mim no frio. Me esconder com braços propositalmente compridos de qualquer bicho selvagem que imitasse muito bem. Devo amar um presente? Me aquieto porque amor é fruto encaroçado. E, preferindo que eu não diga nada, amo tua pele com os olhos.
A gente passa a dar valor nos filmes repetidos na tv, nas músicas paleozóicas, nos tropeções pela casa, quando gosta de alguém. Entende que mil quilômetros é muito quando sente cada metro se desenrolar como uma ponte levadiça até a Coreia do Norte. E só chora baixinho porque é de saudade.

quinta-feira, 13 de maio de 2010

Desagregamento


(Ouvindo The Strokes, You Only Live Once)

Por trás dos vinte jeitos de se ver o mundo e de começar uma briga, das mil maneiras de agradar um homem - ainda que nenhuma requeira planos - existe o cotidiano. As pessoas circulam por entre os carros, minha mão acaba sendo arranhada por garras de um gato que não teve as unhas cortadas, o tempo voa. A rotina me dignifica, dá um papel pro corpo no meio. E quem me molda? Aquilo que faz feliz é parte do ritual social? Por que não comer biscoito recheado no almoço? Tento não saudar o positivismo: O Amor por princípio e a Ordem por base; o Progresso por fim. Fujo então das doutrinas filosóficas, sociológicas e políticas. Sem apologia ao anarquismo, e cheia do sangue adolescente. O rock and roll abre os poros. Vinte e nove atributos, eles só gostam de sete. Eu quero a nostagia de quem se aliena do cabresto de bois marcados. De quem dá beijos sujos de macarrão. Outra vez lunática, que seja. Cada um constrói seu pequeno cometa. Alguns esperam uns 76 anos da órbita, outros se agarram à cauda cheia de poeira cósmica. Porque sou verdadeira me bote sentada ali, me cale. Procrastine. Vamos beber, vamos ler Bocage que já Bocage não é, vamos ouvir solos pesados de guitarra. Montamos num cometa à nossa cama. Há toda uma aura estelar. Há o toque. Há um dia de cada vez.

sábado, 8 de maio de 2010

When you wish upon a star


Cansada, apesar de ter acabado de acordar, resolveu se ocupar com alguma coisa. Ajeitou o coque na cabeça, calçou pantufas azuis e foi à cozinha. Escolheu o jarro mais gelado de leite e cobriu uns dois dedos da caneca com achocolatado. Misturou, desfez bolas grudentas de açúcar e fixou o olhar naquele pequeno mar marrom. Tomou o conteúdo aos poucos, sorrindo com seu bigode desastrado.
Aí notou o céu. Feio, bagunçado por nuvens cinza que ofuscavam o crepúsculo. Procurou um lugar ao chão onde pudesse deitar e se perder diante da imensidão celeste. Parecia olhar pra um painel de ilusão ótica, quase como quando, na infância, folheava livros cheios de figuras que se transformavam assombrosamente. A chuva viria. Estava ela ali, grão de areia engolido pela cosmologia, e no meio do todo viu uma estrela. Miúda, pálida, talvez já inexistente. Seria outra ilusão? Entretanto, o firmamento não conseguia contê-la. A pequena mantia-se firme, dependurada diante da menina. Entreolharam-se num fim de tarde. Quase noite, quase nada. Sem certezas, sem ponderações. A pequena gigante livrou-se das nuvens, fazendo tudo limpo ao seu redor. A pequena terrestre não desejava mais do que ficar ali pra sempre. Pediu à estrela a eternidade. A troco de quê? Viver é pouco, tem de ser. Então sumiram as duas, simplesmente. Fechando-se como rosas. Permaneceram encarando a realidade reversa, o mundo alheio. Mas ao longe. Sem os sentidos. Cobertas pelo fluxo venéreo, meras desconhecidas. Que há de saber do céu, que há de saber da terra? Ao menos soubesse dela própria. E da estrela d'alva.

Procrastinação

Não foi o iogurte que comi pela manhã, a camiseta verde que vesti despretensiosamente nem o hálito mentolado de quem, mesmo sem ver, deixou respingos de creme dental ao redor da boca. Foi o atrito. Teus olhos roçando minha nuca. Ouvi uma balada estranha, tateei tua respiração. Quis chorar colada ao teu rosto, sentirias as lágrimas geladas profundas como o abissal, salgadas, molengas. Sem mistério, pois cansei-me do amor sensual ainda que só por agora. Tu me viste nua, e foi menos erótico do que se visses um pedaço das minhas costas que a blusa não cobriu. Porque a nudez real é abstrata. Vês e divagas. Imaginas um motor, um sino, um leque. Enxergas mãos, peito, coxas. Sentisse eu preguiça, aninharias minha pele ao teu suor. Sem culpa, sem dor. Mas só me viste nua. Não tocaste. Ficamos nós entre a prolixidade do escuro e o calor das dobras. Meu menino, meu amigo, estranho solene. Botaste luz aos meus espasmos. Posso deixar que vás, mas já me acostumei aos gestos, às vozes, à língua com tons caramelizados. Quero imergir em banalidades. Misturar teu cabelo ao meu. Coçar o nariz até que ele avermelhe e eu me entregue como uma boba. Antes preciso de ti. Vem cá.

domingo, 2 de maio de 2010

Arcádia

Tempus fugit. Por trás de toda e qualquer coisa há a ventania. Se os dias fundem-se às noites, a culpa é do relógio. Primeiro desejava colocá-lo em meu pulso tal qual uma tatuagem com engrenagens, a revolução industrial que domesticou a rotina. Depois de tê-lo, aprendendo a viver segundo a sua vontade, já não quase posso me centrar no sentido da vida. Então jogo-o no lixo. É, parece ter hora pra se existir. Almoço, colégio, caminhada, telefone, choro. Ou vai dizer que é simples sair gritando e pedindo por ajuda? Quando eu chegar em casa, depois do trabalho e dos minutos perdidos na padaria, vou abrir meu coração. Primeiro vem a aula de fisiologia animal, o esporro na diretoria. Por que é que, sendo nós passíveis de entendimento, burlamos o momento de sentir? Right here, right now. As horas escravizam. Eles culpam o sistema, então vamos pra Woodstock. Sonhar com as letras de Dylan e a poesia salingeriana. Ora, tragam-nos Pasárgada. Corramos do tempo.
Não houvesse relógio eu deixaria de reclamar por me ligar tão tarde ou cedo. Seria o instante, a efemeridade, o tempo certo. Você sorriria, a conversa se estenderia a fio. O breve nos uniria. Porque o relógio é desculpa pros problemas, máscara da futilidade. Poesia é real. Físicos trabalharão a fim de descobrir a primeira partícula do segundo universal para provar o quê? O nonsense. Passado, presente e futuro nos organizam com qual finalidade? Perder-se no denso, no interminável vazio diz muito mais. Ao invés de descobrir o mundo, monte seu cubo mágico. É frágil ser humano. Dói. E eles ignoram, supostamente sendo responsáveis e adultos. O país das maravilhas é coisa de criança, Alice. Tolos. Subjugo todos esses incorrompíveis, calhordas correndo atrás dos minutos. Tempo é dinheiro, nada além. Fiquem com o dia D. Aguardem os ratos. Melhor: ouçam seus ruídos atrás da porta. Deixem-me com meus monstros, minhas fotografias no escuro, minha luneta quebrada. Lunática serei ao lado dos grandes vadios. Empinem seus narizes. Só não esperem ir pro céu.
Comprarei um relógio de corda, por sacanagem. Para-se quando quiser, corre-se segundo a velocidade da luz. Criarei tempos paralelos. Um desses guardarei pra dar ao amor de Marília de Dirceu. Em outros costurarei tecidos sintéticos, abrirei janelas para o cheiro de bolo quente ecoar, deitarei na relva, devorarei Virginia Woolf, brincarei com crianças, cortarei as unhas. Minha vingança. Poetas virão, duendes, fadas verdes de absinto. Riam-se os demais. Serei feliz.

sábado, 24 de abril de 2010

Estação, estacionamento, estacionário

Foi outono, encontro, calmaria. Foi inverno, calor, constatação do amor. Foi primavera, ventou. Luz inebriante, e pouca magia. Foi verão. Acabou. Fui um pedaço do seu peito, junta da musculatura, motivo de terminações nervosas agitadas. Você foi exceção. Escapismo. Antes que a estação última fosse riscada e outro ciclo viesse à tona, antes de fazer aniversário. Meus desaniversários estiveram ligados a esse sentimento burguês de posse, ao dualismo dos primeiros amantes.
Afora seu olhar, tudo permanece aqui estacionado. Congestionado porque nem mesmo eu caibo em mim. Bagunçado porque as pessoas simplesmente levam seus corpos embora, mas deixam sacos de ossos. Às vezes pútridos, às vezes duros como aço. Fiz um colar com seus ossos que ainda cheiram a sangue. Prometo que não serei masoquista ao colocá-lo. Serão memórias balançando no pescoço, vermes corroendo alguma porcaria. Amor é porcaria. Ácida como suco gástrico, doce como torrões daquele mascavo que tive nojo de experimentar. Amor é mesa posta todo dia. A gente era feriado.
Eu não reclamo, saudade é sentimento passageiro. Pegue o rumo, siga toda vida. Ali na frente há uma placa em letras pretas onde se lê "Estação". Pois estacione. Pare o carro, peça ao coração para fazer as malas. Jogue meus ossos fora. Dali em diante só aceite bilhete de ida - sentado na janelinha. Mas lembre-se dos meus olhos que não piscaram, não feriram, não conseguiram sequer correr de você. Estacionários, procurando sua própria órbita. Leve seus olhos e me deixe a sós com o mundo, menino de óculos.

segunda-feira, 19 de abril de 2010

Para Eva


Tu, moça encarnada com um laço de fita envolvendo as tranças, vais passear. Passarás por uma porta de vidro acinzentado. Não sentirás vontade de correr, mas teus pés andarão conforme o ritmo da coragem: pensei chamar-te audaciosa, grandiloquente, defenestradora dos sinais perniciosos. Acontece, Eva, que és mulher. Ao contrário do heroísmo tão arraigado nos genes masculinos, ser fêmea garante a ti uma doçura de outros tempos. É desnecessário lançar mão da espada e ferir o adversário. Basta um olhar machadiano. Então segue cautelosa.
O caminho tem iluminação parca, típica de um cômodo onde o amor da carne flui. Toparás com as mesmas concavidades que teu corpo opulento possui. Cuidado, se a mão que afaga é a mesma que apedreja, tuas reentrâncias podem seduzir-te e a viagem de nada adiantará. Entra fundo, pois o raso é cortesia da infinita ignorância. Atolar-se em areia movediça já é outro caso. Enfim, procura pensar que vais encontrar mais que um amante: é a ti mesma. Sente o viço da pele e não te esqueças da metafísica tão badalada. Usa dela como lanterna. Ali estarão o deus e o demônio que habitam teu cerne cor de pêssego. Sorrirás e farás a corte. Poderão perguntar-te: de que vale toda essa pompa para lidar contigo? Garanto que nada do que fazem para outros é maior que as obras internas. Não há mal nenhum em ser tão somente tua. O mais é artifício da mídia.
Não falo que autoconhecimento machuca porque é bobagem. Quem abate teu ânimo é teu irmão, teu amigo, teu amor. Sozinha podes não representar um exército, mas há momentos de identificação que te sustentam. Eva, querida, és da costela de um Adão consagrado pela história. Ele já foi embora, liga-te à vida - que só foi realmente concebida depois do pecado original. Ou acreditas em utopia? Apoias o estado natural de Rousseau? A existência seria muito desgraçada sem as tais banalidades do capitalismo. Poderia ponderar acima: a existência feminina, e quanta falácia. Peço, imploro, que te conheças a fim de desmitificar o simulacro em que envolvem tua condição humana. Senta numa esquina e reflete sobre a arte de Frida Kahlo. Pronto. Bebes então dos fatos que ligaram teus membros como cola. Beija a tua boca com os lábios da serpente tão associada à queda primeira. Ela não é má, pobre bicho. Perverso é quem te oprime. Sai pelo mundo inserida em ti. Estendo a mão à tua. Sabes por quê? Sou também Eva. Tua sombra, teus cabelos, teu seio cálido. Vais rir de mim. Mas somos tantas.

domingo, 18 de abril de 2010

A flor de antúrio

Pequena, tão pequena. A flor que se esconde numa inflorescência tem uma timidez que poucos notam. Diante da beleza declarada de tantas, a flor de antúrio acaba imersa num universo paralelo. E não questiona: por acaso tem escrúpulos? Não a culpam, pelo menos, por ouvir Villa-Lobos ao entardecer com seus prelúdios modernistas. Ah, a flor de antúrio. Envaidecida pelas folhas codiformes, simbolizando um amor romântico. Uma faca de dois gumes. Mergulhar dentro da diminuta existência vestida em tons vermelhos - extravagantemente tingidos. Culpo-me por esse comportamento. Tal qual um germe, a forma embrionária do ovo, ainda assim coberta por escarlate. Perdoa-me por ouvir as Bachianas, pois de nada sirvo se não atraio, por mérito próprio, os polinizadores. É que gostaria de me enfeitar pra ti, beija flor. Deixa-me ser notada, quero prevalecer diante dos teus mecanismos captadores de seiva. Sou fácil de plantar, preciso de poucos cuidados e não consigo sequer me exibir aos olhos comuns. Atinge o viço do antúrio com a tua pupila. Só não me ama, minha vida é tão ordinária quanto um calendário de páginas arrancadas. Ofereço ao meu passarinho um doce na boca. Açúcar amargo.