sábado, 24 de abril de 2010

Estação, estacionamento, estacionário

Foi outono, encontro, calmaria. Foi inverno, calor, constatação do amor. Foi primavera, ventou. Luz inebriante, e pouca magia. Foi verão. Acabou. Fui um pedaço do seu peito, junta da musculatura, motivo de terminações nervosas agitadas. Você foi exceção. Escapismo. Antes que a estação última fosse riscada e outro ciclo viesse à tona, antes de fazer aniversário. Meus desaniversários estiveram ligados a esse sentimento burguês de posse, ao dualismo dos primeiros amantes.
Afora seu olhar, tudo permanece aqui estacionado. Congestionado porque nem mesmo eu caibo em mim. Bagunçado porque as pessoas simplesmente levam seus corpos embora, mas deixam sacos de ossos. Às vezes pútridos, às vezes duros como aço. Fiz um colar com seus ossos que ainda cheiram a sangue. Prometo que não serei masoquista ao colocá-lo. Serão memórias balançando no pescoço, vermes corroendo alguma porcaria. Amor é porcaria. Ácida como suco gástrico, doce como torrões daquele mascavo que tive nojo de experimentar. Amor é mesa posta todo dia. A gente era feriado.
Eu não reclamo, saudade é sentimento passageiro. Pegue o rumo, siga toda vida. Ali na frente há uma placa em letras pretas onde se lê "Estação". Pois estacione. Pare o carro, peça ao coração para fazer as malas. Jogue meus ossos fora. Dali em diante só aceite bilhete de ida - sentado na janelinha. Mas lembre-se dos meus olhos que não piscaram, não feriram, não conseguiram sequer correr de você. Estacionários, procurando sua própria órbita. Leve seus olhos e me deixe a sós com o mundo, menino de óculos.

segunda-feira, 19 de abril de 2010

Para Eva


Tu, moça encarnada com um laço de fita envolvendo as tranças, vais passear. Passarás por uma porta de vidro acinzentado. Não sentirás vontade de correr, mas teus pés andarão conforme o ritmo da coragem: pensei chamar-te audaciosa, grandiloquente, defenestradora dos sinais perniciosos. Acontece, Eva, que és mulher. Ao contrário do heroísmo tão arraigado nos genes masculinos, ser fêmea garante a ti uma doçura de outros tempos. É desnecessário lançar mão da espada e ferir o adversário. Basta um olhar machadiano. Então segue cautelosa.
O caminho tem iluminação parca, típica de um cômodo onde o amor da carne flui. Toparás com as mesmas concavidades que teu corpo opulento possui. Cuidado, se a mão que afaga é a mesma que apedreja, tuas reentrâncias podem seduzir-te e a viagem de nada adiantará. Entra fundo, pois o raso é cortesia da infinita ignorância. Atolar-se em areia movediça já é outro caso. Enfim, procura pensar que vais encontrar mais que um amante: é a ti mesma. Sente o viço da pele e não te esqueças da metafísica tão badalada. Usa dela como lanterna. Ali estarão o deus e o demônio que habitam teu cerne cor de pêssego. Sorrirás e farás a corte. Poderão perguntar-te: de que vale toda essa pompa para lidar contigo? Garanto que nada do que fazem para outros é maior que as obras internas. Não há mal nenhum em ser tão somente tua. O mais é artifício da mídia.
Não falo que autoconhecimento machuca porque é bobagem. Quem abate teu ânimo é teu irmão, teu amigo, teu amor. Sozinha podes não representar um exército, mas há momentos de identificação que te sustentam. Eva, querida, és da costela de um Adão consagrado pela história. Ele já foi embora, liga-te à vida - que só foi realmente concebida depois do pecado original. Ou acreditas em utopia? Apoias o estado natural de Rousseau? A existência seria muito desgraçada sem as tais banalidades do capitalismo. Poderia ponderar acima: a existência feminina, e quanta falácia. Peço, imploro, que te conheças a fim de desmitificar o simulacro em que envolvem tua condição humana. Senta numa esquina e reflete sobre a arte de Frida Kahlo. Pronto. Bebes então dos fatos que ligaram teus membros como cola. Beija a tua boca com os lábios da serpente tão associada à queda primeira. Ela não é má, pobre bicho. Perverso é quem te oprime. Sai pelo mundo inserida em ti. Estendo a mão à tua. Sabes por quê? Sou também Eva. Tua sombra, teus cabelos, teu seio cálido. Vais rir de mim. Mas somos tantas.

domingo, 18 de abril de 2010

A flor de antúrio

Pequena, tão pequena. A flor que se esconde numa inflorescência tem uma timidez que poucos notam. Diante da beleza declarada de tantas, a flor de antúrio acaba imersa num universo paralelo. E não questiona: por acaso tem escrúpulos? Não a culpam, pelo menos, por ouvir Villa-Lobos ao entardecer com seus prelúdios modernistas. Ah, a flor de antúrio. Envaidecida pelas folhas codiformes, simbolizando um amor romântico. Uma faca de dois gumes. Mergulhar dentro da diminuta existência vestida em tons vermelhos - extravagantemente tingidos. Culpo-me por esse comportamento. Tal qual um germe, a forma embrionária do ovo, ainda assim coberta por escarlate. Perdoa-me por ouvir as Bachianas, pois de nada sirvo se não atraio, por mérito próprio, os polinizadores. É que gostaria de me enfeitar pra ti, beija flor. Deixa-me ser notada, quero prevalecer diante dos teus mecanismos captadores de seiva. Sou fácil de plantar, preciso de poucos cuidados e não consigo sequer me exibir aos olhos comuns. Atinge o viço do antúrio com a tua pupila. Só não me ama, minha vida é tão ordinária quanto um calendário de páginas arrancadas. Ofereço ao meu passarinho um doce na boca. Açúcar amargo.