terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Conjectura

Até onde a imaginação pode me levar? Decerto a um pé de vento e ao que me arde, lá por dentro. Por quanto tempo duraria? Aos menos esforçados - ou mais encurralados pela vontade de sentir - o ato imaginativo extremo encresparia a vida, todo um contexto simbiótico seria posto em jogo; contudo, sobrepujariam-se os dados viciados. Fantasiar e mergulhar-me nisso traria à superfície solidão inata. Descartes, em seu racionalismo, proporia Cogito ergo sum. Acabo com medo de me infiltrar - sem nem, ao menos, reconhecer meu ser - em 'fatos' genuinamente construídos por mim. Talvez por isso, mentalize uma realidade a partir do olhar em direção ao outro. Me entrego a esse ofício de materializar o que temo sentir quando tenho a quem dar a mão. Imiscuindo ideais ao próprio medo de perder a noção do palpável. Coloco o outro para narrar aquilo que, sozinha, julgo não poder crer. E é errado. E faz mal. E engana. Porque, não arrancando os olhos alheios, não há necessidade - e vontade - da parte deles, de ver através de mim. Querem todos reinar em suas enormes barrigas nutridas pelo ego. Quanto custa entender. Só veem o que vivo, e crio, se algum sentimento anterior os guia: culpa, curiosidade ou inveja. Citaria, corajosa, o amor. Mas aqui nunca houve quem dele se utilizasse a fim de digerir meus pensamentos. Devo, afinal, imaginar e criar muitas realidades paralelas? Fugir e recostar a cabeça com o intuito de sonhar? De que vale intuir um caminho brando e mentiroso? Falar com estrelas é ficção? Buscar dissertações sobre um sorriso que, no fundo, foi só um sorriso? Encaixamos pequenas felicidades no cotidiano quando somos otimistas. Promovemos a catarse. Há lógica?
Buscando refletir, qualquer coisa excede o raciocínio. Importa mais viver do lado de dentro ou do lado de fora? Equilíbrio é sensatez? Criar uma rede que filtra a insegurança de alguns tipos de contato contribui comigo ou deteriora a essência? Existe mesmo uma parte imutável em mim? Posso guardar segredos? Complexo é tomar decisões acerca da espécie mais acertada de fuga. Doar-me é pecado quando as pessoas não têm mãos para tatear. Não têm poros para trocar experiência com meu corpo. Mas me esconder entre desejos vestidos em tecido de lã, esperando por um inverno que não vem, é bobagem. Sei lá o que deve ser feito da cabeça. Procuro frear expectativas esperando a surpresa do embate. Mas é tamanha a voz que grita e tenta se fazer ouvir. Ponho monstros pra dormir enquanto escolho entre beijar a poesia do que julgo ser saudade e o medo do esquecimento. Interessante é que não há pré-concepção, se eu a desconsiderar, para imaginar. Viver e criar são situações transcendentes. Ninguém sabe o que é mais vantajoso. Ninguém precisa, também, tirar vantagem sempre. Mereço a incerteza e a inconstância das palavras livres. Do vento pungente. Da boca seca. Do amor que, de uma hora pra outra, passa a ser real. Ainda que só - não por falha minha - dentro de mim.

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Astronáutica

Chamam 'lunático' aquele moço aluado, excêntrico, proseador com a lua. Alheio, encasulado. Sempre conversei com as estrelas, desde que aprendi a observar um céu acostumado a ignorar limites. Pensar que, se dou nome aos sentimentos e vejo dimensões palpáveis nisso, posso canalizar um bocado de carência e enganar a solidão. É como falar com Deus, a gente não tem resposta. Nem pede por uma. O que, quase nunca, evita que eu chore e narre histórias sem pudor algum, que sussurre porque o tom de voz pouco importa, que faça pedidos e imagine meus mortos pregados no azul entorpecedor da noite, brilhantes. A noite densa guarda esses sábios - e vãos - desacompanhantes. Afinal, é impossível que me ouçam? Creio em todas as alternativas que substituam a previsibilidade geral; pessoas andam ocupadas demais conversando sobre 'acho-que-não-gostei-do-presente-mal-embrulhado-que-ganhei-no-amigo-secreto'. Natal também é sobre estrelas e presépios abarrotados de luzes artificiais, luzindo certeiras. Um amor renovável, atitudes prosaicas, inquietamento da alma. Pareceria um enorme clichê se, na verdade, ultrapassada a pequenez vigente, fôssemos todos compartilhadores de peru. O primeiro pedaço é de quem foi capaz de saciar um corpo lúcido. É de um amigo antigo, esquecido há muito pela distância. Paira, entretanto, a força ignóbil dos laços frouxos que ri de lunáticos. Insensatez carnívora. Não cabe troca de afetos durante a fartura da 'noite feliz'. Enchemos o peru de farofa até que ele pareça explodir. Fingimos, solenes, dentro de casa.
Inquestionáveis, enfim, são as exceções: torço para que haja mais lunáticos à mesa. Enclausurados num universo paralelo, citando poetas bêbados e enluarados. Vestidos como Raul Seixas. Queixosos, chorões, impávidos. Não esperam o dia seguinte para abrir os presentes: devoram, a seco, a carne do homem. Torcem por um único feixe a riscar o alto, o vasto, o cosmos feito de um salão onde comungam ideias e imaginação lisérgica. Sou uma moça que conhece um moço que proseia com estrelas. Ele habita meus sonhos e dá, a nós, alimento. Não tem rosto, mas passa o natal tomando cerveja num planetinha de nome escuso. Acha que é príncipe e estende a mão: convida-me a preencher devaneios e sorrir ao tropeçar em interjeições autoexplicativas. É eu me fechar no quarto, arrastar as cortinas e botar o rosto além da janela pra mergulhar num colosso fugaz. Ao amanhecer, meus olhos têm remela empoeirada. Poeira espessa, estelar.

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Alvorecer

Acordo, ainda não posso dizer que é dia. Timbres ásperos denunciam o gari que antecipa a vida em luz. Postes meio apagados fazem as vezes de sol num céu cinza. Há o frescor das cinco horas. Há pássaros que piam, mas evitam voar. Coldplay me faz cantar baixinho de melancolia quando ligo a televisão: don't you shiver?
Tantos mundos parecem coexistir ao longo dessas horas. Interajo com as plantas e a brisa. Porém sei que estou sozinha. Estamos todos, mesmo dormentes. Quanta beleza existe nisso, e quanto silêncio. Uma tarântula caminha sobre a janela desfilando seu veneno. Sei que ela pode me matar e, sem dúvida, desconfia da hipótese inversa. Contudo, não torcemos pelo embate. De novo entendo a coexistência: vivemos e podemos nos matar - até temos motivos para fazê-lo - mas entre nós cabe um bocado de medo e misantropia. Deixo que a aranha ache seu próprio precipício, julgando ter reconhecido o meu: incrustado nas paredes do quarto, emaranhado na inquietude da praia repousante dentro do peito. Sal, areia e a vastidão do mar. Tenho coqueiros que choram. Sinto saudade, quero me perder nela. São caminhos imantados. Que mal tem eu me esconder num latão de lixo? Guardo o receio de afogar naquele mar denso e pesado. Não suponho haver rotina leve, ainda que os pássaros estejam esperando o tempo certo de voar. O vento seca minhas costas. Estou, de fato, acordando. O que é preciso ser dito? Sinto sim, clara, a saudade. Dói acordar sozinha numa cama de dois, num mundo de seis bilhões, numa vida onde as tarântulas põem ovos sujos na janela e se atiram depressa em direção ao caos. Há tanto amor disperso no ar. Há moscas esperando os sapos engolirem-nas. Contudo, podem sofrer de indigestão ou falta de fome. O amor se deteriora, oxida. Injetamo-lo logo nas veias. Agora uma xícara de chá, por favor. Sem pressa e sem sede, porque o sol insiste em descansar. Insisto então em mim, só por precisar viver até você chegar. Ou até que eu chegue aí. É madrugada pra nós.

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Do outro lado

De uma noite gasta em solidão, biscoitos doces demais e alguma música, resultou aquilo que, vagamente, denominamos mistério. Discreto, ainda que com muita graça, despontou na minha frente um gostinho de sincero sentimento. Prato cheio pra uma cabeça desocupada de pessoas, sinestésica em contemplar emoção. Porque quem apareceu era personificação de um sorriso. Felicidade como na boca de uma criança: sem explicação.
Mas mistério que se preza, não caminha só - é tinhoso. Pois que trouxe consigo uma parede densa de vidro. Eu não podia sentir com as ferramentas usuais. Boca, ouvido, pele, nariz. Um pouco de olhos, sempre eles, indicavam uma placa imaginária: é aqui. Parece tortura, só que foi acalento. Com um estratagema, eu atravessaria as leis da física. Transporia meus medos (os dele também, quem sabe) e brincaria de esconder. Andaria nua por entre seus dentes. Um dia.
Pequenas amostras de curiosidade e afeto entre meros estranhos, de tempos em tempos, evitavam que perdêssemos o contato. Madrugadas insones enquanto nos víamos em reflexos do vidro, mesmo que o sono viesse dois segundos depois de nos despedirmos quase sem voz. Nenhuma resposta consistente. E é melhor pular até a parte do encontro. Pois que, sem pressa, descobrimos que nenhuma parede é infinita num planeta redondo e achatado nos polos. Andei tanto pra achar não uma greta, uma fresta, um buraco: ele me esperava junto à porta. Então mãos podiam agir, vozes eram atendidas e nossos narizes se esbarravam. O mistério era ele existir assim como eu existia. Era poder escorregar meus dedos miúdos pela blusa, examinando até os esparadrapos no corpo. Pausa na velha falta de sentido das coisas. Eu só não esperava sentir tanta tanta tanta saudade - essa palavra intraduzível e ímpar em sinônimos - quando reatravessei a porta. Dormir com seu gosto e acordar com a impressão de ter sido roubada, de terem concretado logo aquela parede. Uma cabeça repleta de hormônios, memória e saudade; a vontade de tê-lo todo, em prosa e verso, em rima e riso, espalhando seu cheiro no meu ombro.
Diz então que não some, que do seu lado da parede a gente ainda tem um espacinho pra sair e procurar aventura ou pra deitar no chão e contar história. Diz também que a gente é bobo, que tudo passa e que eu preciso ficar pra aprender a sentir com seus sentidos e arriscar um dedo de cavaco. Que as coisas simples e as loucuras são fáceis comigo. Que dá pra fugir sem rumo pra eu beijar sua orelha. É a nossa verdade, a partir de uma noite onde nada era esperado e, no entanto, já me esperava. E agora, surpresa, a espera tem graça: eu sei que você e eu vamos devagar - e sempre, até onde for.