sábado, 29 de maio de 2010

Ciranda, cirandinha


Recordasse eu dos olhos da bailarina, a verdade seria simples gracejo. As ruas não chamariam pelo nome de meu pai, os postes guardariam a luz da manhã que ninguém vê e, depois da aurora, encheriam a cidade com o quebrantamento das seis horas. Aquele que dormisse recostado ao colo da branca bailarina pouparia um sorriso, pois seu coração estaria pleno de conquistas. Sentiria beijos com os dedos. Nesse enlace entre guirlandas, gomalina e o calor equatorial do ventre da moça bonita, o rapaz entenderia que de nada vale ter dentes. O mundo não engole ninguém. Pudesse eu enxergar a luz entre os pés de quem dança aos desvarios. Tomaria-lhe as mãos. Liberdade ainda que tardia, um salve aos ideais. Entretanto, a áurea dançarina não mais veio. Talvez teve vontade de se entregar ao tango, tão triste era seu caminho. Talvez quis pintar-se de preto, um luto ao soldadinho. Bailarina não ama. É como a história de Capitu, de Ofélia, de uma atriz do cinema mudo. Vaga, em busca de não se sabe o quê. Finge que sente, daí começa a sentir. Depois corre de pés enfaixados. Custa a mim falar disso. Não nasci bailarina, despreguei do céu como uma fatia de bolo. Fui ao teatro vez ou outra, chorei de quentura. Meus olhos de chocolate, meus lábios de cereja, minhas bochechas de baunilha - que mais valeriam a um glutão – arderam. Então tive vontade de ser a doninha de alguém. Beijos com gosto de sorvete, felicidade em caixinhas coloridas, tornozelos se esbarrando. Soldadinho eu não queria. Sofrer pra quê? Talvez me valesse de Cesário Verde: tuberculoso, dócil e amável. Nossa história duraria tanto quanto a vida de uma rosa, o ideal. Talvez me valesse do Pequeno Príncipe: melancólico, pueril e companheiro. Talvez me valesse de Popeye: um grande marujo a lutar por sua Olívia. Soldadinho quebra a perna. Chora no escuro. É segredo, mas tenho medo de escuro. Chamaria a bailarina por ele e para ele. Só isso.
Como encontrá-la? Conheço os gestos, e seu rosto me fugiu à memória. Quem vê o rosto da bailarina? Refletida em dó menor, sua face se esvai. Cabelos presos, nuca de ninfa. Vestido em camadas – tal qual um bolo. Seria essa nossa semelhança? Ela rodopiando, linda em fragmentos. Eu, dispersa entre pratos, talheres, línguas carmim e uma xícara de chá. Nós duas sem infância, ignoradas quando meninas. Mulheres também não somos. Há o limbo. A bailarina se esconde no limbo enquanto me embrenho em ideias. Fita de cetim, perfume da flor de laranjeira. Essa coisa doce que existe em se esconder. Preciso confiar a você tanta coisa, pequena. Escreverei uma carta ao hemisfério norte, responda a lápis, por favor. Mandarei junto alguns torrões de açúcar e, em troca, saberei por sua letra como é a boca de um garoto. Vai me preparar pras claras em neve que me cobrirão. Seu soldadinho se orgulhará em alguma trincheira. Dançarão a polca um dia. Ritmo de tolos, perfeito pra quem nunca se deu ao luxo de amar. Por enquanto, ensaie. Deixo você dormir na minha caixinha de joias.

quinta-feira, 20 de maio de 2010

Totidimensional

O cubo mágico estivera estragado por todo aquele tempo. A quem atrelar a culpa? Possivelmente ninguém sequer tocara naquela encarnação oitentista empoleirada na escrivaninha. Geometria tridimensional, cores primárias, lógica húngara. Um singelo objeto com 43 quintilhões de combinações. Gilberto nunca soube combinar a própria roupa. Xadrez puído com malhas de lã, meias finas e tênis branco. Mãos muito limpas, unhas grandes pra dedilhar um violão cinza. E a fixação em fitar nove quadradinhos bagunçados. Por que enxergar a vida em duas dimensões? Se Einstein citou o tempo como a quarta, seria Gil manco de duas pernas? Comprimento versus largura. Profundidade era coisa pra artista, vai ver ele queria mesmo polentas fritas no jantar.
Depois de comer, sorrir para a mãe frígida e juntar as fraldas do irmão, Gilberto voltou ao ponto de partida e se sentou desgrenhado na cama. Rodeou o quarto, tentou aderir formas ao pensamento e, estranhamente, notou a janela. Soube contar quantas vezes tinha se aproximado dela nos muitos meses em que esteve hospedado em sua casa. Umas duas. E daí? O que há pra ser encontrado num buraco da parede? Desvencilhou-se da colcha meio hippie de retalhos e quis conferir. Deu logo de cara com o tal profundo das coisas. É, uma janela com sua crosta amadeirada se faz moldura. Durante o dia, pro caos urbano - à noite, imagina-se pra quem: a lua intocável. Pequena, minguante. Unidimensional. Vírgula cercada por estrelas, dependurada num céu de Van Gogh. Gilberto se sentiu embasbacado por descobrir o astro de um jeito tão nonsense. Que espécie de menino de onze anos despreza assim o satélite natural do planeta? Explicações entravam por uma orelha e saíam pela outra na escola. A que veio à Terra, afinal de contas? Conhecimento vai preencher qual vala no peito? Tudo é inútil, meu Deus, até o cubo estivera sempre estragado e o garoto não se deu conta por simplesmente não girá-lo de cabeça pra baixo e constatar a falta de um quadrado branco. Justo branco, sua cor preferida. A mãe um dia dissera que aquele tom era a junção de todos os outros. Isso ele guardou.
Afundado no oco, desejou dormir à janela. Toc toc toc. Adivinhou ser o pai. Ouviu a voz filtrada pela porta, voz que não tinha peso, textura, altura, mas preenchia o cômodo. Estranho. O profundo dentro dele doeu ao entender as últimas palavras ditas: dorme bem, meu goleirão. Gil percebeu o afeto primeiro. Seu pai era o único ser a crer nele, menino de onze anos que agarrava todas as bolas. Quais são as dimensões duma esfera? Entendia disso também não. Mas achou graça. Abriu a vidraça, se assustou com o vento. Indimensionável? Jogou o cubo fora. Fechou a cortina, deixando um pouco da brisa se misturar aos sons deixados pelo pai. Poxa, ser esquisito não é tão ruim assim. Quem sabe pudesse ter uma garota dali um tempo, uma companhia, um encaixe. Mentira, argh. Meninas já se depilam aos onze. Mudou de assunto tocando aquela música do Titanic que ensinaram na aula de violão. Queria ser grande, ir à lua defender gol sem a nossa gravidade. Ser astronauta. Gilberto descobriu os sonhos ainda garoto. Há quem nunca tenha se imaginado no céu. Há quem nunca tenha resolvido o cubo de Rubik. A noite se faz imensa com seus universos paralelos, há, secretamente, quem saiba chegar até lá.

Pretexto


Foi embora de novo e de novo e de novo. Cê vai e eu fico, mas pode ser que, pra ti, tu fiques e eu vá. Pode ser tanta coisa. Meus medos quase enroscam nos teus dedos delgados, as vozes se desfazem, cílios brincam como asas de borboletas. Milhares delas flutuam pelas paredes do estômago que nem comida pede, pelo diafragma descompassado à tua presença de brincadeira. Meu amigo imaginário, meu legionário, meu locutor parado no tempo. Vejo em cores, mas te encaixaria num radinho azul de pilha. Engraçado como tu cabes em cada pedaço da minha cabeça. Vem dormir aqui, encosta teu jeans nos joelhos redondos, molda uma careta pra mim. Não sei quanto tempo a gente pode durar e, sinceramente, pouco importa. Já marcou, pois tu fizeste um buraquinho no coração pra dar de beber água com açúcar - feito os passarinhos. Agora me deixa ficar no bolso, te ligar com o sol nascendo numa segunda-feira, murmurar quase sem voz alguma música que cante a quentura que trazes pros meus pés que nem precisam mais de meia pra dormir. Melado, apaixonado, infantil. Mas me ensinavas até meia hora atrás a importância de ser, sem ao menos ter porquê. Dizias pra me aceitar, fazer piada. Lição de amador. Gosto de quem nem soube trocar o sabor do picolé na boca. Será que eu posso mesmo dizer que te amo? Tu não duvidas, mas não dimensionas. Um menino cheio de dentes e gestos e pele de bebê quando faz a barba. Um menino que podia se abraçar em mim no frio. Me esconder com braços propositalmente compridos de qualquer bicho selvagem que imitasse muito bem. Devo amar um presente? Me aquieto porque amor é fruto encaroçado. E, preferindo que eu não diga nada, amo tua pele com os olhos.
A gente passa a dar valor nos filmes repetidos na tv, nas músicas paleozóicas, nos tropeções pela casa, quando gosta de alguém. Entende que mil quilômetros é muito quando sente cada metro se desenrolar como uma ponte levadiça até a Coreia do Norte. E só chora baixinho porque é de saudade.

quinta-feira, 13 de maio de 2010

Desagregamento


(Ouvindo The Strokes, You Only Live Once)

Por trás dos vinte jeitos de se ver o mundo e de começar uma briga, das mil maneiras de agradar um homem - ainda que nenhuma requeira planos - existe o cotidiano. As pessoas circulam por entre os carros, minha mão acaba sendo arranhada por garras de um gato que não teve as unhas cortadas, o tempo voa. A rotina me dignifica, dá um papel pro corpo no meio. E quem me molda? Aquilo que faz feliz é parte do ritual social? Por que não comer biscoito recheado no almoço? Tento não saudar o positivismo: O Amor por princípio e a Ordem por base; o Progresso por fim. Fujo então das doutrinas filosóficas, sociológicas e políticas. Sem apologia ao anarquismo, e cheia do sangue adolescente. O rock and roll abre os poros. Vinte e nove atributos, eles só gostam de sete. Eu quero a nostagia de quem se aliena do cabresto de bois marcados. De quem dá beijos sujos de macarrão. Outra vez lunática, que seja. Cada um constrói seu pequeno cometa. Alguns esperam uns 76 anos da órbita, outros se agarram à cauda cheia de poeira cósmica. Porque sou verdadeira me bote sentada ali, me cale. Procrastine. Vamos beber, vamos ler Bocage que já Bocage não é, vamos ouvir solos pesados de guitarra. Montamos num cometa à nossa cama. Há toda uma aura estelar. Há o toque. Há um dia de cada vez.

sábado, 8 de maio de 2010

When you wish upon a star


Cansada, apesar de ter acabado de acordar, resolveu se ocupar com alguma coisa. Ajeitou o coque na cabeça, calçou pantufas azuis e foi à cozinha. Escolheu o jarro mais gelado de leite e cobriu uns dois dedos da caneca com achocolatado. Misturou, desfez bolas grudentas de açúcar e fixou o olhar naquele pequeno mar marrom. Tomou o conteúdo aos poucos, sorrindo com seu bigode desastrado.
Aí notou o céu. Feio, bagunçado por nuvens cinza que ofuscavam o crepúsculo. Procurou um lugar ao chão onde pudesse deitar e se perder diante da imensidão celeste. Parecia olhar pra um painel de ilusão ótica, quase como quando, na infância, folheava livros cheios de figuras que se transformavam assombrosamente. A chuva viria. Estava ela ali, grão de areia engolido pela cosmologia, e no meio do todo viu uma estrela. Miúda, pálida, talvez já inexistente. Seria outra ilusão? Entretanto, o firmamento não conseguia contê-la. A pequena mantia-se firme, dependurada diante da menina. Entreolharam-se num fim de tarde. Quase noite, quase nada. Sem certezas, sem ponderações. A pequena gigante livrou-se das nuvens, fazendo tudo limpo ao seu redor. A pequena terrestre não desejava mais do que ficar ali pra sempre. Pediu à estrela a eternidade. A troco de quê? Viver é pouco, tem de ser. Então sumiram as duas, simplesmente. Fechando-se como rosas. Permaneceram encarando a realidade reversa, o mundo alheio. Mas ao longe. Sem os sentidos. Cobertas pelo fluxo venéreo, meras desconhecidas. Que há de saber do céu, que há de saber da terra? Ao menos soubesse dela própria. E da estrela d'alva.

Procrastinação

Não foi o iogurte que comi pela manhã, a camiseta verde que vesti despretensiosamente nem o hálito mentolado de quem, mesmo sem ver, deixou respingos de creme dental ao redor da boca. Foi o atrito. Teus olhos roçando minha nuca. Ouvi uma balada estranha, tateei tua respiração. Quis chorar colada ao teu rosto, sentirias as lágrimas geladas profundas como o abissal, salgadas, molengas. Sem mistério, pois cansei-me do amor sensual ainda que só por agora. Tu me viste nua, e foi menos erótico do que se visses um pedaço das minhas costas que a blusa não cobriu. Porque a nudez real é abstrata. Vês e divagas. Imaginas um motor, um sino, um leque. Enxergas mãos, peito, coxas. Sentisse eu preguiça, aninharias minha pele ao teu suor. Sem culpa, sem dor. Mas só me viste nua. Não tocaste. Ficamos nós entre a prolixidade do escuro e o calor das dobras. Meu menino, meu amigo, estranho solene. Botaste luz aos meus espasmos. Posso deixar que vás, mas já me acostumei aos gestos, às vozes, à língua com tons caramelizados. Quero imergir em banalidades. Misturar teu cabelo ao meu. Coçar o nariz até que ele avermelhe e eu me entregue como uma boba. Antes preciso de ti. Vem cá.

domingo, 2 de maio de 2010

Arcádia

Tempus fugit. Por trás de toda e qualquer coisa há a ventania. Se os dias fundem-se às noites, a culpa é do relógio. Primeiro desejava colocá-lo em meu pulso tal qual uma tatuagem com engrenagens, a revolução industrial que domesticou a rotina. Depois de tê-lo, aprendendo a viver segundo a sua vontade, já não quase posso me centrar no sentido da vida. Então jogo-o no lixo. É, parece ter hora pra se existir. Almoço, colégio, caminhada, telefone, choro. Ou vai dizer que é simples sair gritando e pedindo por ajuda? Quando eu chegar em casa, depois do trabalho e dos minutos perdidos na padaria, vou abrir meu coração. Primeiro vem a aula de fisiologia animal, o esporro na diretoria. Por que é que, sendo nós passíveis de entendimento, burlamos o momento de sentir? Right here, right now. As horas escravizam. Eles culpam o sistema, então vamos pra Woodstock. Sonhar com as letras de Dylan e a poesia salingeriana. Ora, tragam-nos Pasárgada. Corramos do tempo.
Não houvesse relógio eu deixaria de reclamar por me ligar tão tarde ou cedo. Seria o instante, a efemeridade, o tempo certo. Você sorriria, a conversa se estenderia a fio. O breve nos uniria. Porque o relógio é desculpa pros problemas, máscara da futilidade. Poesia é real. Físicos trabalharão a fim de descobrir a primeira partícula do segundo universal para provar o quê? O nonsense. Passado, presente e futuro nos organizam com qual finalidade? Perder-se no denso, no interminável vazio diz muito mais. Ao invés de descobrir o mundo, monte seu cubo mágico. É frágil ser humano. Dói. E eles ignoram, supostamente sendo responsáveis e adultos. O país das maravilhas é coisa de criança, Alice. Tolos. Subjugo todos esses incorrompíveis, calhordas correndo atrás dos minutos. Tempo é dinheiro, nada além. Fiquem com o dia D. Aguardem os ratos. Melhor: ouçam seus ruídos atrás da porta. Deixem-me com meus monstros, minhas fotografias no escuro, minha luneta quebrada. Lunática serei ao lado dos grandes vadios. Empinem seus narizes. Só não esperem ir pro céu.
Comprarei um relógio de corda, por sacanagem. Para-se quando quiser, corre-se segundo a velocidade da luz. Criarei tempos paralelos. Um desses guardarei pra dar ao amor de Marília de Dirceu. Em outros costurarei tecidos sintéticos, abrirei janelas para o cheiro de bolo quente ecoar, deitarei na relva, devorarei Virginia Woolf, brincarei com crianças, cortarei as unhas. Minha vingança. Poetas virão, duendes, fadas verdes de absinto. Riam-se os demais. Serei feliz.