quinta-feira, 20 de maio de 2010

Totidimensional

O cubo mágico estivera estragado por todo aquele tempo. A quem atrelar a culpa? Possivelmente ninguém sequer tocara naquela encarnação oitentista empoleirada na escrivaninha. Geometria tridimensional, cores primárias, lógica húngara. Um singelo objeto com 43 quintilhões de combinações. Gilberto nunca soube combinar a própria roupa. Xadrez puído com malhas de lã, meias finas e tênis branco. Mãos muito limpas, unhas grandes pra dedilhar um violão cinza. E a fixação em fitar nove quadradinhos bagunçados. Por que enxergar a vida em duas dimensões? Se Einstein citou o tempo como a quarta, seria Gil manco de duas pernas? Comprimento versus largura. Profundidade era coisa pra artista, vai ver ele queria mesmo polentas fritas no jantar.
Depois de comer, sorrir para a mãe frígida e juntar as fraldas do irmão, Gilberto voltou ao ponto de partida e se sentou desgrenhado na cama. Rodeou o quarto, tentou aderir formas ao pensamento e, estranhamente, notou a janela. Soube contar quantas vezes tinha se aproximado dela nos muitos meses em que esteve hospedado em sua casa. Umas duas. E daí? O que há pra ser encontrado num buraco da parede? Desvencilhou-se da colcha meio hippie de retalhos e quis conferir. Deu logo de cara com o tal profundo das coisas. É, uma janela com sua crosta amadeirada se faz moldura. Durante o dia, pro caos urbano - à noite, imagina-se pra quem: a lua intocável. Pequena, minguante. Unidimensional. Vírgula cercada por estrelas, dependurada num céu de Van Gogh. Gilberto se sentiu embasbacado por descobrir o astro de um jeito tão nonsense. Que espécie de menino de onze anos despreza assim o satélite natural do planeta? Explicações entravam por uma orelha e saíam pela outra na escola. A que veio à Terra, afinal de contas? Conhecimento vai preencher qual vala no peito? Tudo é inútil, meu Deus, até o cubo estivera sempre estragado e o garoto não se deu conta por simplesmente não girá-lo de cabeça pra baixo e constatar a falta de um quadrado branco. Justo branco, sua cor preferida. A mãe um dia dissera que aquele tom era a junção de todos os outros. Isso ele guardou.
Afundado no oco, desejou dormir à janela. Toc toc toc. Adivinhou ser o pai. Ouviu a voz filtrada pela porta, voz que não tinha peso, textura, altura, mas preenchia o cômodo. Estranho. O profundo dentro dele doeu ao entender as últimas palavras ditas: dorme bem, meu goleirão. Gil percebeu o afeto primeiro. Seu pai era o único ser a crer nele, menino de onze anos que agarrava todas as bolas. Quais são as dimensões duma esfera? Entendia disso também não. Mas achou graça. Abriu a vidraça, se assustou com o vento. Indimensionável? Jogou o cubo fora. Fechou a cortina, deixando um pouco da brisa se misturar aos sons deixados pelo pai. Poxa, ser esquisito não é tão ruim assim. Quem sabe pudesse ter uma garota dali um tempo, uma companhia, um encaixe. Mentira, argh. Meninas já se depilam aos onze. Mudou de assunto tocando aquela música do Titanic que ensinaram na aula de violão. Queria ser grande, ir à lua defender gol sem a nossa gravidade. Ser astronauta. Gilberto descobriu os sonhos ainda garoto. Há quem nunca tenha se imaginado no céu. Há quem nunca tenha resolvido o cubo de Rubik. A noite se faz imensa com seus universos paralelos, há, secretamente, quem saiba chegar até lá.

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