sábado, 31 de julho de 2010

Die another day

Haviam enterrado sua carne em enormes baldes de gelo. Era domingo, o que servia pra confundir o ranger das portas surradas com o monte de ossos estirados sobre a cama de colcha verde. Retalhos cercavam o ambiente. Quadros com gravuras de santos, sabe-se lá quem eram e o que teriam feito. Amuletos para proteger um corpo despedaçado, doente. Viver em cidade grande mata, diziam uns. Enquanto isso, ela preferia ferir a gengiva com um palito até sangrar. Que se pode esperar de alguém sem a rigidez secreta dos músculos? Roubaram a garantia da ação e deixaram aquilo que se chama de espera. Inútil calçar sapatos para dormir. Levar maquiagem ao rosto e esconder a única realidade: negras olheiras. Espasmos, sonhos, minhoquices na cabeça. Solidão pode beirar a loucura. Barulhos estranhos na sala, muita bebida destilada. Embora preferisse gelo e alguma água, deitada permanecia acompanhada por uma goteira ininterrupta: chuva dos canos velhos da casa. Líquido viscoso batendo fundo em osso. Calando. Luta entre espadas.
Ao indagar se era mulher, se tinha curvas e traços exóticos ou cabelo macio, caía em si. Seus dedos haviam perdido até as digitais. Sacrilégios mórbidos, pupilas dilatadas. Que ligasse ao restaurante e pedisse macarrão, comeria com os dentes e então se satisfaria da fome de longos anos. Mas desistiu de tudo, outra vez. Quanto pessimismo, seria mesmo uma fêmea execrável? Puxa, restava sangue. Sangue entre os ossos calcificados, sangue nos olhos quase cegos, sangue fluindo ali. Decidiu se jogar da cama, fugir dos retalhos e se chocar com o chão. Talvez fosse de vidro e quebrasse feito uma bonequinha que teve na infância. Desfazer-se-ia em flocos transparentes. Colocariam seus restos em saquinhos para que o lixeiro não se cortasse. Existiria a redoma do cuidado. Súbito debruçou-se já quebradiça e fechou os olhos: foi. Durante a queda sentiu o vento dilacerando o tempo, nada mais importaria. Surpresa era escapar do estrago. Caiu sentada, amortecida pelo bumbum. Recuperou instantaneamente braços, queixo, cartilagens e forma. A coragem de, enfim, atirar-se à morte transformou a inexistência de perspectivas em vergonha, culpa cristã.
Se nunca deixara de ser a moça morena que gostava de amarelo, por que diabos desistira dos espelhos? Tocou as sobrancelhas e sorriu com a boca ainda machucada. Era óbvia a existência de feridas. Deu-se a chance de levantar. Não fazia sentido ainda estar ali. Devia correr, amar um estranho, abraçar seus pais? Anotou de modo mental os velhos sonhos e assustadoramente perdida deitou-se. Achou que descansaria até estar preparada, pois evitava a tal correria com a vida. Meteu-se a ouvir Schumann e sua Kreisleriana. Brainstorm. Chances sempre são tiros no escuro, experimentar não é vencer. Tivera o rompante, faltava o tesão. Razão é argumento de céticos. Mas comportar-se tal qual uma raposa definitivamente não demonstra fé. Autodestruição também é hipocrisia. Tomou, por fim, sua boa dose de antidepressivos. Uma noite, outra noite, incoerente pedido de ajuda. Paredes e notas musicais denotando fuga, fuga fuga fuga fuga, fuga.

terça-feira, 20 de julho de 2010

Encontro


Pintei seu rosto de verde enquanto a gente ouvia um cover dos Smiths. Você já entrando nalguma viela da mente, eu coçando sua falha no cabelo. Relógios foragidos sem promessa de recompensa. Seu rosto pintado de verde preterido pelo sorriso porque os dentes remetem ao pecado da gula, ao desajuste do calendário. Sem querer vi nascer um maço de gérberas atrás da minha orelha. Surpresa, entendi meio ressabiada a possibilidade do cuidado. Mãos zelando por mim. Olhos complicados de encarar justamente por refletirem o frescor desencontrado da pouca idade - meu desencontro. Corpo distraído pela imprudência vertiginosa dos meus dedos. Dia sim, dia não, sonhei com um gramado onde beijava um menino desconhecido. Smiths transformados em Beatles. Eu sendo Penny Lane, Anna, Clarabella, sua wild honey pie. Talvez uma despedida de Eleanor e da solidão dos traslados, da fuga insensata daquilo que chamavam por destino. Era louca renovação. Dei a chance de me enfeitar pra você com aquelas flores. Deixei que seu tronco me sustentasse. Nos aninhamos quando, ao servir o café, você botou torrões de açúcar nos meus sentidos - todos eles.
Finalmente uma história de cinema: dois estranhos numa livraria na seção de rock. Uma menina pequena, vestida em psicodelia e de mãos suadas. Um rapaz que tremia até os cotovelos. Juntos como namorados, perdidos em protocolos e cerimônias: qual é melhor hora pra beijar você? Entre as 24, escolheria aquela em que seu perfume se impregnou no meu vestido. Ou a outra em que ouvi seu coração desesperado. Ou a das mãos dadas. Entre as 24 horas do dia bastariam os longos minutos de silêncio ao seu lado. Uma tomada longa sustentada pelo riff de here comes the sun e, ao fundo, uma amoreira. Amor não é poeira, luz baixa e sussurro. É a clareza da manhã amarela, sanduíche de presunto com suco de melancia e sorvete. Paixão é ouvir The Smiths, o amor vem com os Beatles. How soon is now? Let it be.

segunda-feira, 5 de julho de 2010

À espera(nça)


Não chovia porque era Julho, nunca vi chover em Julho. Nunca vi braços dados na chuva durante todos esses anos. Talvez nos filmes. Fellini, Jeunet ou Godard com suas mocinhas manhosas e espertas encontrando um rapaz de olhos impregnados por geleia de ameixa. Os mesmos olhos que não costumam ser vistos numa multidão, tímidos e angustiados. Fazia tanto frio, e por que o céu não se (des)fazer todo em gotas? Nada trazia renovação. As folhas nem caíam como no outono, o mundo estava - pelo menos nesse hemisfério - seco, vago.
Mudar-me daqui tampouco seria solucionar problemas. O calor que agora transpira ao norte é temporário, logo volta pra cá. Ser feliz pela metade não interessa a ninguém. Precisava ver homem e mulher sendo reais, verdadeiramente agraciados pelos pingos d'água. Ainda que não fosse eu junto a ti. É preciso saber abrir mão dos frutos se, porventura, verdes estão. Eu, que acho engraçada a cara que as pessoas fazem quando mordem uma banana imatura, sendo privada da adstringência dos teus lábios. Daquilo tudo que busquei descobrir entre a mudez e solidão. Precisaria ir a Marte para te esquecer. Sabe-se lá o que o cosmos guarda. Um país de sol e chuva: casamento de viúva. Refúgio da chuva e do sol: casamento de espanhol. Bastava a união entre a viuvinha e o imigrante. Beijos molhados, roupas secas, nada de resfriados. A humildade de quem deseja estar perto pois entende a falta que o outro faz. Nós dois planejando o que comer de madrugada. Felicidade despretensiosa. Há melhor jeito?
Se não te tenho montado num patinete, tu te colas ao botão mais secreto da minha camisa. Se tu não falas a minha língua, te ensino a cantar de boca fechada. Se não estás aqui, te boto num livro, viras palavra. Minha palavra mais bonita: amor. Aí viajo pelo quarto em busca de ti.