quarta-feira, 10 de novembro de 2010

O menino que nunca recebera uma declaração de amor

Me disseram, não faz tanto tempo, alguma coisa a respeito de um menino que desconhecia o amor. Seu nome não importa, mas era velho o bastante para ter quem por ele olhasse: estava na casa dos dez anos. A mãe, supus ser uma mulher com traços de timidez ou desatenção; o pai, sempre trabalhando, pouco sabia do resto do mundo. Hábitos prosaicos. Televisão ao fim do expediente, jantar na sala, aluguéis de comédias durante os feriados. Suspeito que, havendo alguém a lançar um olhar ao pequeno, existiriam chances de que ele pudesse - e soubesse - ver a si próprio e ter sua hora da estrela. Só que logo seria um homem e talvez nem tivesse entendido a grandeza disso justamente por nunca, nunquinha, ter se deparado com a coisa que aqui chamo de amor. Uma coisa meio mecânica inventada para recriar a utopia dos contos e a excrescência dos poetas. Uma coisa filha da puta de boa. Perigosa. Quem arriscaria dizer: eu nunca amei? Nosso projeto truffauniano, sim. Porque parece que ali não houve semeadura. É comum essas pessoas acabarem tendo rostos brancos de inanimação, tais como as folhas que acompanham, grudadas, a capa de um livro. Pois bem, fiquei comovida com a prerrogativa de desventuras. Nenhum professor, nenhum amigo, nenhuma menina ou familiar quisera introduzir, lá no âmago, um respingo de amorzinho. Eu gosto de declarações. Então, naquele dia, elaborei um tosco plano. O de, num rompante, exclamar: andemos juntos, eu amo você! Louca e cheia da inquietude onírica, parti para a execução. Como custaria.
Um pequeno detalhe é digno de nota: também tinha por volta de dez anos. Onde aprendi o que tive a pretensão de querer ensinar? Nos romances de Virginia Woolf e ao confabular com o Sítio do Picapau Amarelo. Me aproximei do menino sem nunca antes termos conversado e reparei que seus dentes eram bonitos e que tinha uns olhos de leão - leão meio deslocado da savana, é certo. Quis sentir seu hálito, mas pouco falava. Lembro que gostou das minhas mãos, sibilando: são pequenas, fazem bem a mim. Ali abandonei a esquisita filantropia, pois o cretino me ganhara. Passamos a nos enxergar mais. Agora eu sentia medo de simplesmente vomitar nele palavras. Cogitei a possibilidade de um beijo. Grande imaginação a minha, ele seria incapaz de beijar lábios tão virgens de carinho quanto os dele. Decidi refletir. Importante foi eu ter entrado, de soslaio, na vida de alguém. Já li uma coisa parecida com isso certa vez, perdão pela falta de memória, mas era quase assim: tente imaginar a emoção do primeiro arqueólogo ao descobrir o túmulo de um imponente faraó. Ao percorrer uma espécie de caminho desconhecido, adentrei naquilo que nem o próprio pequeno julgava existir. Que aventura. Que responsabilidade para uma também pequena. Seguimos.
Dada uma certa altura, minha vontade de sussurrar ternura era tamanha que, por pura impulsividade, escrevi-lhe: gosto gosto gosto de gostar de você. Não se preocupe, gosto gosto porque entendo a sua força. Ao que ele respondeu: não sei gostar, mas tento. Então tentamos, duas crianças debaixo de uma imensa tábua azul onde penduraram estrelas. Ele sabia tanto sobre tanta coisa. Eu sabia da felicidade do encontro. Só faltava a declaração em si.
Pois que não houve. O menino que não tinha sentimentos partiu os meus. Como? Por um medo repentino de passar a amar com os olhos abertos. Pois que não houve mais do que mãos dadas e afeição. Num bolso da calça, meu papel reafirmava os passos, o amor, a amebíase que é estar apaixonado. Choveu no bolso da calça uma enxurrada de lágrimas pueris. Chorei também como mulher - mas esse choro lavou. E a história do menino sem letras de Chico Buarque ou poemas de Adélia Prado acabou como qualquer perda. Perdemos todos. Fiquei eu com a sensação de desbravadora, ainda mirim, de um coração desprovido de ressalvas. A coisa mais linda que já tateei. Quem sabe não era eu a destinada a narrar um amor surreal. Mas você, menino perdido, menino pequeno, menino maior do que eu, foi violado por mim. Guardei o invólucro e não devolvo. A não ser que se devolva embrulhado na maresia descolada da tábua, aquela tábua de estrelas.

P.S.: Há, sobretudo (e somente), saudade.

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