quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Sine Die

Negligente, seguiu do outro lado da rua. O dia havia sugado até mesmo suas espinhas no rosto. Enxergava-se através de muitas dimensões, pois a face já soava como casca de árvore que engrossa a fim de contar os anos. Sentimentos paleozoicos. Sempre aquela sensação enrustida em mãos diferentes passando por sua vida confusa. Valia-se de nada, nem do caminhão de experiências por que tinha resistido. Estava mais magra: parecia um esqueleto preservado pelo tempo.
Não sabia explicar se fora machucada ou mastigada por incólumes palavras. Incongruente esse caminhar. E foi andando aos tropeços, num esforço honesto. Ela, a negligente, teve repentino anseio por manter-se de pé. Lembrou de premissas arrastadas por livros. Condenara os clássicos tão ardentemente, e logo tudo transitava pelo clichê. Braços de ninguém. Menina dos olhos despregada. A droga do rompante. Seus cabelos atrelados àquela reação em cadeia alucinógena. Perdida em Verlaine, absorta numa névoa de filmes antigos. Tanto drama. Decerto o velho Goethe sorriria em ironia.
Adiante sibilava uma ponte em tom cinza. Ela não pularia para se justificar. Ela tinha amigos alienígenas enquanto bebia. Ela era escorpiana. Só permanecera em si a demência e a deterioração. Dubiedade de quem jogava com sentimentos alheios e assistia engolirem os seus. Ao menos experimentasse a fraqueza e a sinceridade do anonimato. Dar adeus aos velhos fantasmas, tirar a roupa no meio da rua. Seguir cartilhas e jogar no bingo. Contava mais do que a surpresa do ato, tornaria-se uma questão onde estratagemas eram postos ao alto.
Quis ouvir música, então cantou. A voz, envolvendo ponte, luz, calçada suja e insetos no chão, era doce e destoava da vida. Como assim? Destoava. Não desbotava nem dava ar sadio. Um provocante afluxo de ondas. Quisesse provocar um rapaz, duvidaria de sua capacidade mental. Cria em botões que se pareciam com escaravelhos. A voz doce destoava por ser doce ao pé da noite onde tudo é mentira e nada é verdade. Onde beber traz amigos extraterrestres arrastados por um timbre que gruda. Amigos são sempre bem vindos e umbigos guardam água do último banho. Não pulou da ponte porque faltava procurar por muito daquilo que lera - abominando - nos clássicos.

Um comentário:

  1. É difícil ser imprevisível, então só vou elogiar, der. Seu método funciona. (:

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