segunda-feira, 19 de abril de 2010

Para Eva


Tu, moça encarnada com um laço de fita envolvendo as tranças, vais passear. Passarás por uma porta de vidro acinzentado. Não sentirás vontade de correr, mas teus pés andarão conforme o ritmo da coragem: pensei chamar-te audaciosa, grandiloquente, defenestradora dos sinais perniciosos. Acontece, Eva, que és mulher. Ao contrário do heroísmo tão arraigado nos genes masculinos, ser fêmea garante a ti uma doçura de outros tempos. É desnecessário lançar mão da espada e ferir o adversário. Basta um olhar machadiano. Então segue cautelosa.
O caminho tem iluminação parca, típica de um cômodo onde o amor da carne flui. Toparás com as mesmas concavidades que teu corpo opulento possui. Cuidado, se a mão que afaga é a mesma que apedreja, tuas reentrâncias podem seduzir-te e a viagem de nada adiantará. Entra fundo, pois o raso é cortesia da infinita ignorância. Atolar-se em areia movediça já é outro caso. Enfim, procura pensar que vais encontrar mais que um amante: é a ti mesma. Sente o viço da pele e não te esqueças da metafísica tão badalada. Usa dela como lanterna. Ali estarão o deus e o demônio que habitam teu cerne cor de pêssego. Sorrirás e farás a corte. Poderão perguntar-te: de que vale toda essa pompa para lidar contigo? Garanto que nada do que fazem para outros é maior que as obras internas. Não há mal nenhum em ser tão somente tua. O mais é artifício da mídia.
Não falo que autoconhecimento machuca porque é bobagem. Quem abate teu ânimo é teu irmão, teu amigo, teu amor. Sozinha podes não representar um exército, mas há momentos de identificação que te sustentam. Eva, querida, és da costela de um Adão consagrado pela história. Ele já foi embora, liga-te à vida - que só foi realmente concebida depois do pecado original. Ou acreditas em utopia? Apoias o estado natural de Rousseau? A existência seria muito desgraçada sem as tais banalidades do capitalismo. Poderia ponderar acima: a existência feminina, e quanta falácia. Peço, imploro, que te conheças a fim de desmitificar o simulacro em que envolvem tua condição humana. Senta numa esquina e reflete sobre a arte de Frida Kahlo. Pronto. Bebes então dos fatos que ligaram teus membros como cola. Beija a tua boca com os lábios da serpente tão associada à queda primeira. Ela não é má, pobre bicho. Perverso é quem te oprime. Sai pelo mundo inserida em ti. Estendo a mão à tua. Sabes por quê? Sou também Eva. Tua sombra, teus cabelos, teu seio cálido. Vais rir de mim. Mas somos tantas.

3 comentários:

  1. ..Escreve bem demais! Tá lindo Isaa.

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  2. Parece suspeito? ahhhhhhhhh nem ligo, você é o máximo Derrr, maior talento. E eu sou a mais feliz por te ter sempre perto.

    beijo

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  3. isa, prazer.
    que texto bom, gostoso de ler:::
    separei coisas que gostei muito. são elas:

    :::ser fêmea garante a ti uma doçura de outros tempos.

    :::o raso é cortesia da infinita ignorância.

    :::garanto que nada do que fazem para outros é maior que as obras internas.

    :::senta numa esquina e reflete sobre a arte de Frida Kahlo.

    sou do blog Tua Filha Gosta. :]
    és leitora assídua ou apenas encontrou a foto da Frida?

    estás favoritada.
    agradecida por voltar e compartilhar o link.

    vamos manter contato?
    meu email: tuafilhagosta@gmail.com

    um beijo~

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